sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

UNIVERSIDADE BRASILEIRA: DE MARTINS FILHO A CRISTOVAM BUARQUE.

UNIVERSIDADE BRASILEIRA: DE MARTINS FILHO A CRISTOVAM BUARQUE



(Discurso proferido por João Álcimo Viana Lima na solenidade de colação de grau da UECE/CECITEC, em Tauá, em 06 de fevereiro de 2003).


NOTA:

Em 1/9/2016, em meu perfil no Facebook escrevi:

Pra quem já fez discurso, em solenidade de colação de grau, enaltecendo o legado democrático do reitor e governador Cristovam Buarque, que decepção vê-lo reduzido ao papel de cúmplice de um golpe parlamentar.


O professor Vicente de Paulo Carvalho Madeira, ex-reitor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), definiu uma tipologia, mesmo consciente dos riscos da simplificação, para os reitores das universidades públicas brasileiras(1). Para ele, os nossos reitores dividem-se em três categorias: primeiro, os estruturadores/estrategistas; segundo, os provocadores; e por último, os acomodadores.

O reitor estruturador


Acompanhando o raciocínio do professor Madeira, o reitor estruturador consiste, aliás, consistia (entendo que pelas circunstâncias atuais, o verbo fica mais apropriado no pretérito) de uma liderança que arregimentava apoio político e a integração da intelectualidade local/regional para a implantação de universidades públicas em seus estados. Aqui, não se trata de indagar acerca dos referenciais teóricos que deram aporte a esses projetos de edificação de instituições universitárias. Trata-se, portanto, de reconhecer o desprendimento, o denodo, a inteligência, a consciência, a capacidade de lançar estratégias e o espírito público de profissionais como Lynaldo Cavalcanti de Albuquerque [1932-2011], na Paraíba, e Antônio Martins Filho [1904-2002], este com atuação decisiva no Ceará.
Aqui, cabe um destaque especial ao professor Martins Filho, o nosso estruturador de universidades. Antecipando-se à maioria dos estados das regiões Norte e Nordeste, conseguiu fundar uma Universidade Federal no Estado cearense em 1954; acompanhando o processo de regionalização universitária e consciente da importância política e social da criação de instituições universitárias públicas estaduais, Martins Filho liderou a criação de nossa UECE, que se efetivou em 1975. Foi também reitor-fundador da Universidade Regional do Cariri (URCA) e colaborador da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), no início de suas atividades e do projeto de instalação da Universidade de Fortaleza (UNIFOR).
Não quero neste momento, laurear o nosso "eterno Reitor" com denominações ao estilo de "grande homem" e de "grande herói", cujos impactos de sua difusão, sob a égide positivista, referendaram uma história estanque, factual, romântica e, acima de tudo, uma história de poucos. Mas sim, quero ser justo, exatamente em um momento como este – nobre e que sintetiza o cumprimento de uma das funções da universidade, ou seja, o ensino. Quero ser justo com quem teve a iniciativa e o mérito de liderar um processo tão importante para o desenvolvimento cearense. As ações pioneiras e estruturantes do professor Antônio Martins Filho contaram à época e, posteriormente, com vários atores, cujas participações são também meritórias e os seus impactos refletem-se numa solenidade como esta. As ações de Martins Filho tiveram, portanto, um senso de coletividade, de nordestinidade e de cearensidade. Ora, como um bom cearense, ele chegou a "peitar" nada menos que Gilberto Freyre [1900-1987], que deixou transparecer sua defesa pela hegemonia cultural de Pernambuco, no âmbito do Nordeste(2). Mas, o reitor estruturador caracterizava-se pela insistência em seus objetivos e pela garra em superar obstáculos. Desse modo, Gilberto Freyre e tantos outros oponentes aos projetos de Martins Filho acabaram por ceder, denotando o respeito que este conquistara.


O reitor provocador

         Retornando à tipologia do professor Vicente Madeira, enfatizo a presença do reitor provocador. Este se configura por seu caráter problematizador; pela difusão de seu pensamento acerca do papel da universidade, colocando-o em discussão; por lançar novos paradigmas de universidade; e pelo seu intento de planejar a universidade para o futuro. Pedindo o beneplácito do professor Madeira, abro um parêntese para destacar Anísio Teixeira [1900-1971] e Darcy Ribeiro [1923-1997], que ao fundarem a Universidade de Brasília (UnB), em 1961, foram, concomitantemente, estruturadores e provocadores. O caráter eminentemente provocador de ambos expressa-se nesta declaração de Darcy: "A Universidade de que precisamos, antes de existir como um fato no mundo das coisas, deve existir como um projeto, uma utopia, no mundo das ideias. Nossa tarefa, pois, consiste em definir as linhas básicas deste projeto utópico, cuja formulação deverá ser suficientemente clara e atraente para poder atuar como força mobilizadora na luta pela reforma da estrutura vigente"(3)
         Outro exemplo lapidar de reitor provocador é o do senador Cristovam Buarque, [reitor da UnB, de 1985 a 89 e ministro da Educação, de 2002 a janeiro de 2003](4). Quando reitor da Universidade de Brasília, talvez tenha procurado se destacar mais como um "pensador", embora sua gestão tenha lhe credenciado para ser futuramente eleito governador do Distrito Federal(5). Ao seu estilo, Cristovam falou em "aventura da universidade"(6); pensou um sistema universitário intimamente associado com a ciência e a tecnologia; idealizou o desmembramento do ensino superior, do Ministério da Educação, proposta tão criticada atualmente; combateu o continuísmo de lideranças nos mesmos cargos; e, ao assumir a pasta ministerial no Governo Lula [em janeiro de 2003], enfatizou a necessidade premente de ser criada uma "mania por educação" entre os brasileiros(7).

O reitor acomodador


         As expectativas são enormes. E, no caso específico da educação, até mais em função do Ministro do que na pessoa e na história do Presidente recém empossado(8). Vejamos o seguinte: Cristovam Buarque, o tipo reitor provocador, ao assumir o MEC deparou-se com uma realidade, cujas políticas federais estão direcionando e condenando os reitores para assumirem um papel meramente administrativo, ao estilo do bom acomodador(9). É este terceiro tipo de reitor que, grosso modo, vem prevalecendo ultimamente no seio das universidades públicas federais e estaduais. O desrespeito às dimensões do princípio da autonomia e a escassez crescente de recursos financeiros têm conduzido os gestores a manterem uma relação de submissão perante os chefes de governo. Desse modo, o reitor assume a postura de não deixar as atividades pararem, negociando a contratação de professores substitutos em caráter emergencial e a liberação de verbas para poder fazer algum investimento. Ao salvar a "barra" da instituição, a cada momento, a mercê da omissão estatal, barra-se o estilo estruturador e frustram-se as perspectivas de provocação.
         Se em nível de administração superior, a situação encontra-se nesse patamar, imaginem o grau de dificuldades com que se deparam os diretores de unidades acadêmicas. No caso específico do CECITEC, vivemos um paradoxo: convivemos com uma nítida falta de estrutura, incluindo a carência de funcionários, as deficiências das instalações físicas, a falta de acesso a novas tecnologias e a insuficiência de acervo bibliográfico. No entanto, a área de Matemática, mesmo sem um curso específico(10), obteve conceito C, no Exame Nacional de Cursos do MEC(11), por duas vezes seguidas e o curso de Pedagogia, nas duas vezes em que foi submetido ao referido Provão, obteve Conceito A(12), numa prova inequívoca de competência, no âmbito das atividades acadêmicas.
Magnífico Reitor, sei de seu compromisso com a interiorização universitária e das dificuldades financeiras que Vossa Magnificência vive enfrentando, sem, no entanto, cair no pessimismo e buscando solucionar os problemas e acomodar as diferentes situações(13). Mas, entendo que a UECE precisa zelar mais pelo nível de competência do CECITEC: em 2001, fomos o único Conceito A, em toda UECE, e em 2002, ficamos entre os três cursos de nossa Universidade com o conceito máximo.

Por uma Universidade autônoma e competente


         Contrapondo-se aos postulados que definham o caráter dos reitores e diretores, tornando-os mais acomodadores e menos gestores, almejamos uma universidade autônoma, cuja vocação científica não seja desfigurada, como estão protagonizando, ao elegerem o mercado como sua ratio finita. Defendemos uma universidade autônoma em todas as suas dimensões, mas não entendida como absoluta, inacessível e como feudo de intelligentsia. Queremos uma universidade autônoma para preservar sua missão de formadora e de produtora e difusora do saber, para assim cumprir suas vocações política e científica, em consonância com os valores acadêmicos e princípios democráticos, atentando-se para as demandas sociais. Defendemos uma universidade que se (re)avalie processualmente e que dê satisfações de suas atividades à sociedade e ao Estado. Queremos um Estado que aja para o fortalecimento das instituições universitárias, ao conceber a função estratégica que elas representam – e que podem melhor representar – para o desenvolvimento regional e nacional. Mas, não queremos um Estado que subordine e que limite a liberdade acadêmica, tão necessária ao florescimento intelectual e científico.
         O modelo expansionista, posto em prática após a promulgação da Lei nº 9.393/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) e sob a insígnia do Ministério da Educação, tem proporcionado uma verdadeira avalanche de instituições privadas de ensino superior, em forma de faculdade, faculdade integrada, instituto e curso isolado, desobrigados de implantarem uma estrutura universitária e de integrarem ensino, pesquisa e extensão(14). Referido modelo configura-se como uma antítese aos ideais de Martins Filho, que antes de seu falecimento, em 20 de dezembro de 2002, assistiu com tristeza à valorização e ao crescimento vertiginoso da “não Universidade” e da retração do Estado, quanto ao seu papel de manter e de expandir a universidade pública.
         Estou esperançoso de que Cristovam Buarque também se destaque como o “ministro provocador”. Entendo que provocação não significa desmantelar tudo o que foi encontrado simplesmente porque se trata de um novo governo. Provocação está relacionada à exposição ao debate, ao questionamento de paradigmas, às proposições abalizadas e à serenidade nas avaliações, que, por seu turno, não elimina a possibilidade de reconhecer que determinadas políticas vêm dando certo. Espero que o ministro provocador, ao buscar imprimir a "mania por educação", recupere a "mania por universidade" que Martins Filho e seus companheiros de ideal ousaram implementar, nas décadas de 40 a 70 do século passado. Hoje, não se trata mais de uma justaposição de escolas superiores e faculdades, mas de fortalecer a universidade pública, como instituição plenamente autônoma e competente, cujas ações devem ser norteadas pela lógica acadêmica. Trata-se de expandir significativamente o número de vagas nas universidades públicas e de fortalecer, sem discriminação de região ou de instituição, o seu espírito científico.

 

A colação de grau


         Senhoras e senhores, sempre fico feliz em participar de solenidades universitárias, especialmente quando se trata de uma colação de grau. Não há como não identificar este evento com o caráter estruturador e provocador, respectivamente, de Martins Filho e Cristovam Buarque. Temos aqui 39 formandos em Ciências e Pedagogia(15), cujas competências não se expressam somente no Provão do MEC, mas também na elaboração e apresentação de monografias, na conquista de espaços profissionais, nas reflexões proporcionadas e no retorno inestimável que estão dando ao Sertão dos Inhamuns.
         Ao concluir, faço uso das palavras do Reitor Antônio Martins Filho: "A espiritualidade, e por ela entendemos um elo de unidade espiritual a aproximar as diversas atividades universitárias sem descer a dogmas, jamais poderá existir numa universidade que não tenha, em suas justas proporções, a autonomia de que carece para viver, tanto quanto um ser vivo de ar para respirar"(16).
            Parabéns concludentes. Muito obrigado!

NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

(1)  MADEIRA, V. P. C. O administrador, o político e o acadêmico. In: ORGANIZAÇÃO INTERAMERICANA. A gestão da Universidade Brasileira: A visão dos Reitores. Piracicaba, SP: UNIMEP, 1995. p. 69-74.
(2)  MENEZES NETO, P. E. Martins Filho. Fortaleza: Demócrito Rocha, 2004. p. 111 et. seq. (Coleção Terra Bárbara).
(3)  RIBEIRO, D. A Universidade necessária. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 172.
(4)  Cristóvam Buarque foi demitido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por telefone, em 22 de janeiro de 2004, quando se encontrava em Portugal. Segundo matéria, no dia seguinte, da Folha Online, “Cristovam - que estava na embaixada brasileira em Lisboa quando foi demitido por Lula - avaliou como ‘desconsideração’ ser desligado do governo por telefone. [...] Ontem, o ex-ministro se disse ‘surpreso’ com a possibilidade de deixar o cargo e chegou a mostrar uma lista de convênios na área de educação que assinaria na viagem presidencial à Índia”. Ainda, segundo a reportagem: “O presidente avalia que Cristovam é um bom formulador, mas um mau gestor. Por isso, quer tirá-lo do cargo. Ontem, o presidente disse que era hora de mostrar resultados e que a educação era uma área sensível”.
(5)  Cristóvam Buarque foi governador do Distrito Federal, no período de 1995 a 1998. Em seu governo, em 1995, foi implantado o programa Bolsa Escola, que serviria de referência no País para a implantação de programas de transferência de renda. Cf. BUARQUE, C.; CASTRO, V.; AGUIAR, M. Um pouco da história do Bolsa-Escola. Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 66, p. 127-144, jun. 2001. 
(6)  Cf. BUARQUE, C. A aventura da Universidade. Brasília: Unimep, 1994. 239p.
(7)  O POVO. Cristóvam Buarque diz que manterá projetos que deram certo. Fortaleza, 21 dez. 2002. Disponível em: http://www.noolhar.com/opovo.... Acesso em: 22 dez. 2002.
(8)  Em que pese a expectativa destacada neste discurso, Cristovam Buarque ficaria somente mais 11 onze meses no cargo, como falei anteriormente.
(9)  Cf. MADEIRA, op. cit.
(10)       O curso de Ciências foi implantado nas unidades da UECE de Limoeiro do Norte e Quixadá (em 1994) e de Tauá (1995), com duas habilitações: Matemática e Física; Química e Biologia. (LIMA, J. A. V., Gestão e autonomia universitária: A experiência da UECE. Fortaleza: UECE, 2003. p. 176). A partir de 2004, a UECE deixou de oferecer vagas em seus vestibulares para o curso de Ciências e implantou os cursos de Licenciatura em Ciências Biológicas, Física, Matemática e Química. No caso específico de Tauá, foram criados os cursos de Ciências Biológicas e Química.
(11)       O Exame Nacional de Cursos (que ficou conhecido como “Provão”) foi implantado pelo ministro Paulo Renato Souza, em 1996, para avaliar a aprendizagem dos cursos de graduação. Com as posses de Lula (presidente da República) e de Cristovam Buarque (ministro da Educação), mantém-se a defesa da avaliação externa às instituições de ensino superior, mas altera-se a metodologia. Em 2004, já com o ministro Tarso Genro, foi implantado o ENADE (Exame Nacional de Desempenho de Alunos), no âmbito do SINAES (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior).
(12)       Cf. O POVO. Pedagogia de Tauá ganha conceito "A" pela 2ª vez. Fortaleza, 18 dez. 2002. / LIMA, J. A. V. Conceito A. Diário do Nordeste, Fortaleza, 20 jan. 2003. Caderno 1, p. 2.
(13)       Cf. LIMA, J. A. V. A experiência de gestão da UECE e o princípio da autonomia universitária. 2002, 245f. Dissertação (Mestrado em Gestão Educacional) – UI/UVA, Fortaleza, 2002. p. 155-161.
(14)       Os artigos 45 e 46 da Lei nº 9.394/1996 não preveem a obrigatoriedade da indissociabilidade de ensino e pesquisa e extensão por parte da instituições de ensino superior.
(15)       Os formandos da referida solenidade são os seguintes: curso de Pedagogia - Adriana Desidério Torquato, Aléssia Florêncio Feitosa Martins, Argentina Cardoso e Silva, Aurineide Carvalho Feitosa, Dilma Maria Lima, Dionísia Pereira de Sousa Filha, Eliane Santana de Sousa, Francisca de Assis Leite Torres, Francisco Djalma Mendes Peixoto, Francisco Feitosa Lima Neto, Isabel Maria Maia A. Leite Bonfim, Ismênia Carlos Rodrigues, Janaína Cavalcante Gonçalves, José Fabrício Cavalcante Mota, Josimeiry Carlos Feitosa, José Monteiro Neto, Júlio Marcos Siqueira Lima, Manoel Timóteo, Maria da Paz Alves Lima, Maria Gomes Fernandes, Maria Helena A. Pedrosa Mota, Maria Rozeleide de Oliveira, Maria Salete Vale Farias, Maria Veralice de O. Lima, Meire Lúcia Alves da Silva, Mosiane Vale Farias, Nilton Moreira de Lima e Silva, Patrícia Kércya Ferreira Barra, Rondinei Oliveira Loiola, Sônia Maria Maia Amorim, Valdivânia Maria Furtado Bezerra, Valéria Rodrigues Loiola, Vicente de Paulo Alves dos Santos e Waltecarlos Rodrigues dos Santos.
(16)       MARTINS FILHO, A. O universal pelo regional: definição de uma política universitária. 2. ed. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1966. p. 253. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário