Lembro-me
da cena de uma novela da TV Globo, onde a espalhafatosa Viúva Porcina
(interpretada por Regina Duarte), com o beneplácito do amante, o todo poderoso
Sinhozinho Malta (interpretado por Lima Duarte), exigia, em alto e bom som, o
roteiro detalhado do filme que abordaria a saga do suposto mártir e taumaturgo
e seu falso marido Roque Santeiro. O diretor do filme esboçou a defesa de seu
projeto, porém atônito e sob ameaças, viu-se obrigado a submetê-lo, de
imediato, à avaliação e à aprovação prévia de Porcina.
O
referido filme biográfico fez parte de uma ficção televisiva, mas que, sob a
criação do dramaturgo Dias Gomes, revelou características de um Brasil real,
evidenciando o mandonismo local ao velho estilo coronelístico, na fictícia
cidade de Asa Branca. O ano era 1985, que marcou o retorno da democracia no
País; mas dez anos antes, a novela havia sido censurada pela ditadura
militar.
Entendo
que o restabelecimento da liberdade de expressão, incluindo a produção
literária, musical e dramatúrgica, tão cara para a democracia e tão defendida
por vários artistas nos trabalhos da Constituinte pós-regime militar, não se
coaduna com a prévia autorização, parcial ou total, de livros biográficos por
parte dos biografados ou de seus familiares. É porque não faz sentido e fere um
princípio básico da autonomia autoral.
A
autorização prévia fica implícita quando o biografado contrata seu próprio
biógrafo ou quando há um entendimento ou parceria entre eles, como ocorreu,
neste ano, com a publicação do livro "Casagrande e seus demônios",
assinado por ele e pelo jornalista Gilvan Bezerra.
É fato que
temos pessoas públicas que, ao se tornarem fontes de estudo e literatura, sentiram-se
denegridas com o desfecho de suas biografias, a partir da
investigação de suas trajetórias e das informações publicadas. Nesse sentido,
cabem as ações judiciais previstas na Constituição brasileira. Foi, exatamente, a Carta Magna de 1988, a
despeito dos questionamentos em torno do Código Civil (aprovado em 2001), que
garantiu aos brasileiros, em seu artigo 220, a conquista da “manifestação do
pensamento”, “criação”, “expressão” e “informação”, livre de “qualquer censura de
natureza política, ideológica e artística”.
Confesso
que fiquei surpreso com as posições de Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto
Gil, por meio da Associação Procure Saber, na questão que envolve a publicação
de biografias sem prévia aprovação dos biografados. Longe de demonizar a
posição defendida, pois, na divergência, precisamos respeitar o pensamento
oposto. Mas é porque a biografia dos três astros, para além do que
fizeram de grandioso na MPB, está associada à oposição ao regime militar e à
defesa da livre expressão. Por sinal, os três foram vítimas de ávidos censores
e de exílio no auge da ditadura.
Contudo,
não fiquei surpreso com a posição de Roberto Carlos, até porque há muitos anos,
ele se opõe a publicações de livros a seu respeito, tendo recorrido à justiça
para fazer valer o direito à sua privacidade. Esse é o Roberto, que há mais de
cinco décadas, sem parar, mantém-se nas paradas de sucesso e que uma vez
investido de “rei”, comportou-se como tal (zelando sua imagem e preservando sua
“coroa”). Roberto tergiversa sobre assuntos pessoais; fora dos palcos e da
televisão (onde tem contrato de exclusividade com a TV Globo), muito pouco se
expõe; não é afeito a debates públicos, tampouco a comentários polêmicos.
Enquanto,
Roberto Carlos, em 1964, já cantava “É proibido fumar”, Caetano Veloso, em
1968, cantava ousadamente “É proibido proibir”. Embora amigos, os dois têm
comportamentos diferentes: enquanto um radicaliza, o outro relativiza. Por
conta disso, fiquei, outra vez, surpreso com as queixas de Caetano Veloso, em
sua coluna no jornal O Globo, em 3/11/2013, ao afirmar que, no caso das
biografias, ele, Chico, Gil e Djavan apanharam muito da mídia e que Roberto
“vem de rei”. É exatamente por isso que ele (Roberto Carlos) não “apanhou”
tanto, pois não se vê incoerência na sua posição de agora.
Caetano,
também, assevera seu desprezo de cuidar de sua imagem. No entanto, Roberto
Carlos jamais, em sã consciência, fará ou dirá algo semelhante. Na coluna
seguinte, em 10/11/2013, Caetano pede perdão ao amigo e afirma que suas
“trombadas nascem de querer quebrar algum esquema cristalizado”.
Enfim, as
“trombadas” de Caetano e a aura de “rei” de Roberto, tão compatíveis na
parceria musical, evidenciaram-se incompatíveis nos métodos de ação/reação da
Associação Procure Saber. Principalmente, após a explícita opinião pública em
seu desfavor.
Independentemente
dessa posição que tomaram ou de outras que venham a tomar, permaneço
fã de quem compôs e canta “Fera ferida”, “Esse cara sou eu“, “Sampa”, “Força
estranha”, “Construção”, “Trocando em miúdos”, “Vamos fugir”, “Drão”, “Oceano”
e “Meu bem querer”.
(João Álcimo Viana Lima)