domingo, 17 de novembro de 2013

As “trombadas” de Caetano, a “aura” de Roberto e a questão das biografias.


Lembro-me da cena de uma novela da TV Globo, onde a espalhafatosa Viúva Porcina (interpretada por Regina Duarte), com o beneplácito do amante, o todo poderoso Sinhozinho Malta (interpretado por Lima Duarte), exigia, em alto e bom som, o roteiro detalhado do filme que abordaria a saga do suposto mártir e taumaturgo e seu falso marido Roque Santeiro. O diretor do filme esboçou a defesa de seu projeto, porém atônito e sob ameaças, viu-se obrigado a submetê-lo, de imediato, à avaliação e à aprovação prévia de Porcina.  

O referido filme biográfico fez parte de uma ficção televisiva, mas que, sob a criação do dramaturgo Dias Gomes, revelou características de um Brasil real, evidenciando o mandonismo local ao velho estilo coronelístico, na fictícia cidade de Asa Branca. O ano era 1985, que marcou o retorno da democracia no País; mas dez anos antes, a novela havia sido censurada pela ditadura militar.  

Entendo que o restabelecimento da liberdade de expressão, incluindo a produção literária, musical e dramatúrgica, tão cara para a democracia e tão defendida por vários artistas nos trabalhos da Constituinte pós-regime militar, não se coaduna com a prévia autorização, parcial ou total, de livros biográficos por parte dos biografados ou de seus familiares. É porque não faz sentido e fere um princípio básico da autonomia autoral.

A autorização prévia fica implícita quando o biografado contrata seu próprio biógrafo ou quando há um entendimento ou parceria entre eles, como ocorreu, neste ano, com a publicação do livro "Casagrande e seus demônios", assinado por ele e pelo jornalista Gilvan Bezerra.

É fato que temos pessoas públicas que, ao se tornarem fontes de estudo e literatura, sentiram-se denegridas com o desfecho de suas biografias, a partir da investigação de suas trajetórias e das informações publicadas. Nesse sentido, cabem as ações judiciais previstas na Constituição brasileira. Foi, exatamente, a Carta Magna de 1988, a despeito dos questionamentos em torno do Código Civil (aprovado em 2001), que garantiu aos brasileiros, em seu artigo 220, a conquista da “manifestação do pensamento”, “criação”, “expressão” e “informação”, livre de “qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.

Confesso que fiquei surpreso com as posições de Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil, por meio da Associação Procure Saber, na questão que envolve a publicação de biografias sem prévia aprovação dos biografados. Longe de demonizar a posição defendida, pois, na divergência, precisamos respeitar o pensamento oposto. Mas é porque a biografia dos três astros, para além do que fizeram de grandioso na MPB, está associada à oposição ao regime militar e à defesa da livre expressão. Por sinal, os três foram vítimas de ávidos censores e de exílio no auge da ditadura. 

Contudo, não fiquei surpreso com a posição de Roberto Carlos, até porque há muitos anos, ele se opõe a publicações de livros a seu respeito, tendo recorrido à justiça para fazer valer o direito à sua privacidade. Esse é o Roberto, que há mais de cinco décadas, sem parar, mantém-se nas paradas de sucesso e que uma vez investido de “rei”, comportou-se como tal (zelando sua imagem e preservando sua “coroa”). Roberto tergiversa sobre assuntos pessoais; fora dos palcos e da televisão (onde tem contrato de exclusividade com a TV Globo), muito pouco se expõe; não é afeito a debates públicos, tampouco a comentários polêmicos. 

Enquanto, Roberto Carlos, em 1964, já cantava “É proibido fumar”, Caetano Veloso, em 1968, cantava ousadamente “É proibido proibir”. Embora amigos, os dois têm comportamentos diferentes: enquanto um radicaliza, o outro relativiza. Por conta disso, fiquei, outra vez, surpreso com as queixas de Caetano Veloso, em sua coluna no jornal O Globo, em 3/11/2013, ao afirmar que, no caso das biografias, ele, Chico, Gil e Djavan apanharam muito da mídia e que Roberto “vem de rei”. É exatamente por isso que ele (Roberto Carlos) não “apanhou” tanto, pois não se vê incoerência na sua posição de agora.  

Caetano, também, assevera seu desprezo de cuidar de sua imagem. No entanto, Roberto Carlos jamais, em sã consciência, fará ou dirá algo semelhante. Na coluna seguinte, em 10/11/2013, Caetano pede perdão ao amigo e afirma que suas “trombadas nascem de querer quebrar algum esquema cristalizado”.  

Enfim, as “trombadas” de Caetano e a aura de “rei” de Roberto, tão compatíveis na parceria musical, evidenciaram-se incompatíveis nos métodos de ação/reação da Associação Procure Saber. Principalmente, após a explícita opinião pública em seu desfavor.  

Independentemente dessa posição que tomaram ou de outras que venham a tomar, permaneço fã de quem compôs e canta “Fera ferida”, “Esse cara sou eu“, “Sampa”, “Força estranha”, “Construção”, “Trocando em miúdos”, “Vamos fugir”, “Drão”, “Oceano” e “Meu bem querer”.
(João Álcimo Viana Lima)

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