sábado, 2 de setembro de 2023

TRAVE CORINTHIANA

TRAVE CORINTHIANA


(João Álcimo Viana Lima, em 30/08/2023)  


Nelson Rodrigues, em crônica publicada no O Globo, em 1963, cravou que: “A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana. Às vezes, num corner mal ou bem batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural”.

Decorridos quase 60 anos da aludida missiva rodriguiana, o Estádio Jorge Luís Hirschi, em La Plata, testemunhou a evidência do transcendentalismo, com os olhares incrédulos e a reverência (ora espontânea, ora compulsória) da torcida local.

É que os “deuses do futebol” resolveram sacramentar o “29 de agosto” como o dia do protagonismo da trave. Logo ela, historicamente relegada a uma condição de espectadora inexpressiva da angústia do goleiro na hora do gol.

Ironicamente, a inesperada proeminência sucedeu em duelo de argentinos contra brasileiros, com a efemeridade da glória e a retumbância do sobrenaturalismo. Sim, a trave foi elevada ao cimo do templo dos esportes não apenas com um toque de evidência, mas com meia dúzia de arremessos platinos, que caprichosamente beijaram a sua despretensiosa e indesejável face.

Harmonicamente, as três fases da contenda (os dois tempos e a decisão em penais), dividiram a obra em partes iguais. Durante o tempo regulamentar, as traves, uma em cada tempo, com seus 2 m e 44 cm verticais, ditaram a regência do jogo. Nas penalidades máximas, a trave superior, com seus 7 m e 32 cm de extensão, ratificou a que veio e de quem estava a serviço.

Mas o esplendor por um dia teve a participação direta (ou indireta) do goleiro Cássio, do Corinthians, o personagem ungido como coadjuvante privilegiado e principal assistente da dona da noite. No enredo, com as mais fortes doses de dramaticidade, ele trocou as mãos pelos olhos. É improvável haver sintonia mais perfeita. As traves de La Plata e os olhos do defensor brasileiro conectaram-se com precisão tamanha que a bola pareceu estar sob o domínio absoluto desta simbiose.

Os olhares de Cássio, ora de soslaio, ora em ângulo horizontal, deram a impressão de desviar o curso da bola. Esta, ao ser tangenciada, foi ao encontro de seu destino: a trave rodriguiana, em noite de trave corinthiana.




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