TRAVE CORINTHIANA
Nelson Rodrigues, em crônica publicada no O Globo, em 1963,
cravou que: “A mais sórdida pelada é de
uma complexidade shakespeariana. Às vezes, num corner mal ou bem batido,
há um toque evidentíssimo do sobrenatural”.
Decorridos quase
60 anos da aludida missiva rodriguiana, o Estádio Jorge Luís Hirschi, em La
Plata, testemunhou a evidência do transcendentalismo, com os olhares incrédulos
e a reverência (ora espontânea, ora compulsória) da torcida local.
É que os “deuses
do futebol” resolveram sacramentar o “29 de agosto” como o dia do protagonismo
da trave. Logo ela, historicamente relegada a uma condição de espectadora
inexpressiva da angústia do goleiro na hora do gol.
Ironicamente, a
inesperada proeminência sucedeu em duelo de argentinos contra brasileiros, com
a efemeridade da glória e a retumbância do sobrenaturalismo. Sim, a trave foi
elevada ao cimo do templo dos esportes não apenas com um toque de evidência,
mas com meia dúzia de arremessos platinos, que caprichosamente beijaram a sua
despretensiosa e indesejável face.
Harmonicamente,
as três fases da contenda (os dois tempos e a decisão em penais), dividiram a
obra em partes iguais. Durante o tempo regulamentar, as traves, uma em cada
tempo, com seus 2 m e 44 cm verticais, ditaram a regência do jogo. Nas
penalidades máximas, a trave superior, com seus 7 m e 32 cm de extensão,
ratificou a que veio e de quem estava a serviço.
Mas o esplendor
por um dia teve a participação direta (ou indireta) do goleiro Cássio, do Corinthians,
o personagem ungido como coadjuvante privilegiado e principal assistente da
dona da noite. No enredo, com as mais fortes doses de dramaticidade, ele trocou
as mãos pelos olhos. É improvável haver sintonia mais perfeita. As traves de La
Plata e os olhos do defensor brasileiro conectaram-se com precisão tamanha que
a bola pareceu estar sob o domínio absoluto desta simbiose.
Os olhares de
Cássio, ora de soslaio, ora em ângulo horizontal, deram a impressão de desviar
o curso da bola. Esta, ao ser tangenciada, foi ao encontro de seu destino: a
trave rodriguiana, em noite de trave corinthiana.
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