UNIVERSIDADE
BRASILEIRA: DE MARTINS FILHO A CRISTOVAM BUARQUE
(Discurso
proferido por João Álcimo Viana Lima na solenidade de colação de grau da
UECE/CECITEC, em Tauá, em 06 de fevereiro de 2003).
NOTA:
Em 1/9/2016, em meu perfil no Facebook escrevi:
Pra quem já fez discurso, em solenidade de colação de grau,
enaltecendo o legado democrático do reitor e governador Cristovam Buarque, que
decepção vê-lo reduzido ao papel de cúmplice de um golpe parlamentar.
O professor Vicente de Paulo Carvalho
Madeira, ex-reitor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), definiu uma
tipologia, mesmo consciente dos riscos da simplificação, para os reitores das
universidades públicas brasileiras(1). Para ele, os nossos reitores
dividem-se em três categorias: primeiro, os estruturadores/estrategistas; segundo,
os provocadores; e por último, os acomodadores.
O reitor estruturador
Acompanhando o raciocínio do
professor Madeira, o reitor estruturador consiste, aliás, consistia (entendo
que pelas circunstâncias atuais, o verbo fica mais apropriado no pretérito) de
uma liderança que arregimentava apoio político e a integração da
intelectualidade local/regional para a implantação de universidades públicas em
seus estados. Aqui, não se trata de indagar acerca dos referenciais teóricos
que deram aporte a esses projetos de edificação de instituições universitárias.
Trata-se, portanto, de reconhecer o desprendimento, o denodo, a inteligência, a
consciência, a capacidade de lançar estratégias e o espírito público de
profissionais como Lynaldo Cavalcanti de Albuquerque [1932-2011], na Paraíba, e Antônio Martins Filho [1904-2002], este com atuação decisiva no
Ceará.
Aqui, cabe um destaque especial
ao professor Martins Filho, o nosso estruturador de universidades.
Antecipando-se à maioria dos estados das regiões Norte e Nordeste, conseguiu
fundar uma Universidade Federal no Estado cearense em 1954; acompanhando o
processo de regionalização universitária e consciente da importância política e
social da criação de instituições universitárias públicas estaduais, Martins
Filho liderou a criação de nossa UECE, que se efetivou em 1975. Foi também
reitor-fundador da Universidade Regional do Cariri (URCA) e colaborador da Universidade
Estadual Vale do Acaraú (UVA), no início de suas atividades e do projeto de
instalação da Universidade de Fortaleza (UNIFOR).
Não quero neste
momento, laurear o nosso "eterno Reitor" com denominações ao estilo
de "grande homem" e de "grande herói", cujos impactos de
sua difusão, sob a égide positivista, referendaram uma história estanque,
factual, romântica e, acima de tudo, uma história de poucos. Mas sim, quero ser
justo, exatamente em um momento como este – nobre e que sintetiza o cumprimento
de uma das funções da universidade, ou seja, o ensino. Quero ser justo com quem
teve a iniciativa e o mérito de liderar um processo tão importante para o
desenvolvimento cearense. As ações pioneiras e estruturantes do professor
Antônio Martins Filho contaram à época e, posteriormente, com vários atores,
cujas participações são também meritórias e os seus impactos refletem-se numa
solenidade como esta. As ações de Martins Filho tiveram, portanto, um senso de
coletividade, de nordestinidade e de cearensidade. Ora, como um bom cearense,
ele chegou a "peitar" nada menos que Gilberto Freyre [1900-1987], que deixou transparecer sua
defesa pela hegemonia cultural de Pernambuco, no âmbito do Nordeste(2).
Mas, o reitor estruturador caracterizava-se pela insistência em seus objetivos
e pela garra em superar obstáculos. Desse modo, Gilberto Freyre e tantos outros
oponentes aos projetos de Martins Filho acabaram por ceder, denotando o
respeito que este conquistara.
Retornando à tipologia do professor
Vicente Madeira, enfatizo a presença do reitor provocador. Este se configura
por seu caráter problematizador; pela difusão de seu pensamento acerca do papel
da universidade, colocando-o em discussão; por lançar novos paradigmas de
universidade; e pelo seu intento de planejar a universidade para o futuro.
Pedindo o beneplácito do professor Madeira, abro um parêntese para destacar
Anísio Teixeira [1900-1971] e Darcy
Ribeiro [1923-1997], que ao fundarem
a Universidade de Brasília (UnB), em 1961, foram, concomitantemente,
estruturadores e provocadores. O caráter eminentemente provocador de ambos
expressa-se nesta declaração de Darcy: "A Universidade de que precisamos,
antes de existir como um fato no mundo das coisas, deve existir como um projeto,
uma utopia, no mundo das ideias. Nossa tarefa, pois, consiste em definir as
linhas básicas deste projeto utópico, cuja formulação deverá ser
suficientemente clara e atraente para poder atuar como força mobilizadora na
luta pela reforma da estrutura vigente"(3).
Outro exemplo lapidar de reitor provocador
é o do senador Cristovam Buarque, [reitor
da UnB, de 1985 a 89 e ministro da Educação, de 2002 a janeiro de 2003](4).
Quando reitor da Universidade de Brasília, talvez tenha procurado se destacar
mais como um "pensador", embora sua gestão tenha lhe credenciado para
ser futuramente eleito governador do Distrito Federal(5). Ao seu
estilo, Cristovam falou em "aventura da universidade"(6);
pensou um sistema universitário intimamente associado com a ciência e a
tecnologia; idealizou o desmembramento do ensino superior, do Ministério da
Educação, proposta tão criticada atualmente; combateu o continuísmo de
lideranças nos mesmos cargos; e, ao assumir a pasta ministerial no Governo Lula
[em janeiro de 2003], enfatizou a
necessidade premente de ser criada uma "mania por educação" entre os
brasileiros(7).
O reitor acomodador
As
expectativas são enormes. E, no caso específico da educação, até mais em função
do Ministro do que na pessoa e na história do Presidente recém empossado(8).
Vejamos o seguinte: Cristovam Buarque, o tipo reitor provocador, ao assumir o
MEC deparou-se com uma realidade, cujas políticas federais estão direcionando e
condenando os reitores para assumirem um papel meramente administrativo, ao
estilo do bom acomodador(9). É este terceiro tipo de reitor que, grosso modo, vem prevalecendo
ultimamente no seio das universidades públicas federais e estaduais. O desrespeito
às dimensões do princípio da autonomia e a escassez crescente de recursos
financeiros têm conduzido os gestores a manterem uma relação de submissão
perante os chefes de governo. Desse modo, o reitor assume a postura de não
deixar as atividades pararem, negociando a contratação de professores
substitutos em caráter emergencial e a liberação de verbas para poder fazer
algum investimento. Ao salvar a "barra" da instituição, a cada
momento, a mercê da omissão estatal, barra-se o estilo estruturador e
frustram-se as perspectivas de provocação.
Se em nível de administração superior,
a situação encontra-se nesse patamar, imaginem o grau de dificuldades com que
se deparam os diretores de unidades acadêmicas. No caso específico do CECITEC,
vivemos um paradoxo: convivemos com uma nítida falta de estrutura, incluindo a
carência de funcionários, as deficiências das instalações físicas, a falta de
acesso a novas tecnologias e a insuficiência de acervo bibliográfico. No
entanto, a área de Matemática, mesmo sem um curso específico(10),
obteve conceito C, no Exame Nacional de Cursos do MEC(11), por duas
vezes seguidas e o curso de Pedagogia, nas duas vezes em que foi submetido ao
referido Provão, obteve Conceito A(12), numa prova inequívoca de
competência, no âmbito das atividades acadêmicas.
Magnífico Reitor, sei de seu compromisso com
a interiorização universitária e das dificuldades financeiras que Vossa
Magnificência vive enfrentando, sem, no entanto, cair no pessimismo e buscando
solucionar os problemas e acomodar as diferentes situações(13). Mas,
entendo que a UECE precisa zelar mais pelo nível de competência do CECITEC: em
2001, fomos o único Conceito A, em toda UECE, e em 2002, ficamos entre os três
cursos de nossa Universidade com o conceito máximo.
Por uma Universidade autônoma e competente
Contrapondo-se aos postulados que
definham o caráter dos reitores e diretores, tornando-os mais acomodadores e
menos gestores, almejamos uma universidade autônoma, cuja vocação científica
não seja desfigurada, como estão protagonizando, ao elegerem o mercado como sua
ratio finita. Defendemos uma
universidade autônoma em todas as suas dimensões, mas não entendida como
absoluta, inacessível e como feudo de intelligentsia.
Queremos uma universidade autônoma para preservar sua missão de formadora e de
produtora e difusora do saber, para assim cumprir suas vocações política e
científica, em consonância com os valores acadêmicos e princípios democráticos,
atentando-se para as demandas sociais. Defendemos uma universidade que se
(re)avalie processualmente e que dê satisfações de suas atividades à sociedade
e ao Estado. Queremos um Estado que aja para o fortalecimento das instituições
universitárias, ao conceber a função estratégica que elas representam – e que
podem melhor representar – para o desenvolvimento regional e nacional. Mas, não
queremos um Estado que subordine e que limite a liberdade acadêmica, tão
necessária ao florescimento intelectual e científico.
O modelo expansionista, posto em
prática após a promulgação da Lei nº 9.393/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional) e sob a insígnia do Ministério da Educação, tem
proporcionado uma verdadeira avalanche de instituições privadas de ensino
superior, em forma de faculdade, faculdade integrada, instituto e curso
isolado, desobrigados de implantarem uma estrutura universitária e de
integrarem ensino, pesquisa e extensão(14). Referido modelo
configura-se como uma antítese aos ideais de Martins Filho, que antes de seu
falecimento, em 20 de dezembro de 2002, assistiu com tristeza à valorização e
ao crescimento vertiginoso da “não Universidade” e da retração do Estado,
quanto ao seu papel de manter e de expandir a universidade pública.
Estou esperançoso de que Cristovam
Buarque também se destaque como o “ministro provocador”. Entendo que provocação
não significa desmantelar tudo o que foi encontrado simplesmente porque se
trata de um novo governo. Provocação está relacionada à exposição ao debate, ao
questionamento de paradigmas, às proposições abalizadas e à serenidade nas
avaliações, que, por seu turno, não elimina a possibilidade de reconhecer que
determinadas políticas vêm dando certo. Espero que o ministro provocador, ao
buscar imprimir a "mania por educação", recupere a "mania por
universidade" que Martins Filho e seus companheiros de ideal ousaram
implementar, nas décadas de 40 a 70 do século passado. Hoje, não se trata mais
de uma justaposição de escolas superiores e faculdades, mas de fortalecer a
universidade pública, como instituição plenamente autônoma e competente, cujas
ações devem ser norteadas pela lógica acadêmica. Trata-se de expandir
significativamente o número de vagas nas universidades públicas e de
fortalecer, sem discriminação de região ou de instituição, o seu espírito
científico.
A colação de grau
Senhoras e senhores, sempre fico feliz
em participar de solenidades universitárias, especialmente quando se trata de
uma colação de grau. Não há como não identificar este evento com o caráter
estruturador e provocador, respectivamente, de Martins Filho e Cristovam
Buarque. Temos aqui 39 formandos em Ciências e Pedagogia(15), cujas
competências não se expressam somente no Provão do MEC, mas também na
elaboração e apresentação de monografias, na conquista de espaços
profissionais, nas reflexões proporcionadas e no retorno inestimável que estão
dando ao Sertão dos Inhamuns.
Ao concluir, faço uso das palavras do
Reitor Antônio Martins Filho: "A espiritualidade, e por ela entendemos um
elo de unidade espiritual a aproximar as diversas atividades universitárias sem
descer a dogmas, jamais poderá existir numa universidade que não tenha, em suas
justas proporções, a autonomia de que carece para viver, tanto quanto um ser
vivo de ar para respirar"(16).
Parabéns concludentes. Muito obrigado!
NOTAS E REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
(1) MADEIRA, V. P. C. O administrador, o
político e o acadêmico. In: ORGANIZAÇÃO INTERAMERICANA. A gestão da Universidade Brasileira: A visão dos Reitores.
Piracicaba, SP: UNIMEP, 1995. p. 69-74.
(2) MENEZES NETO, P. E. Martins Filho. Fortaleza: Demócrito
Rocha, 2004. p. 111 et. seq. (Coleção Terra Bárbara).
(3) RIBEIRO, D. A Universidade necessária. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1991. p. 172.
(4)
Cristóvam
Buarque foi demitido pelo presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, por telefone, em 22 de janeiro de 2004, quando se
encontrava em Portugal. Segundo matéria, no dia seguinte, da Folha Online, “Cristovam - que estava na
embaixada brasileira em Lisboa quando foi demitido por Lula - avaliou como
‘desconsideração’ ser desligado do governo por telefone. [...] Ontem, o
ex-ministro se disse ‘surpreso’ com a possibilidade de deixar o cargo e chegou
a mostrar uma lista de convênios na área de educação que assinaria na viagem
presidencial à Índia”. Ainda, segundo a reportagem: “O presidente avalia que
Cristovam é um bom formulador, mas um mau gestor. Por isso, quer tirá-lo do
cargo. Ontem, o presidente disse que era hora de mostrar resultados e que a
educação era uma área sensível”.
(5) Cristóvam Buarque foi
governador do Distrito Federal, no período de 1995 a 1998. Em seu governo, em
1995, foi implantado o programa Bolsa Escola, que serviria de referência no
País para a implantação de programas de transferência de renda. Cf. BUARQUE,
C.; CASTRO, V.; AGUIAR, M. Um pouco da história do Bolsa-Escola. Serviço Social
& Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 66, p. 127-144, jun. 2001.
(6) Cf. BUARQUE, C. A aventura da Universidade. Brasília: Unimep, 1994. 239p.
(7) O POVO. Cristóvam Buarque diz que manterá projetos que deram certo. Fortaleza,
21 dez. 2002. Disponível em: http://www.noolhar.com/opovo....
Acesso em: 22 dez. 2002.
(8) Em que pese a expectativa destacada
neste discurso, Cristovam Buarque ficaria somente mais 11 onze meses no cargo,
como falei anteriormente.
(9) Cf. MADEIRA, op. cit.
(10)
O
curso de Ciências foi implantado nas unidades da UECE de Limoeiro do Norte e
Quixadá (em 1994) e de Tauá (1995), com duas habilitações: Matemática e Física;
Química e Biologia. (LIMA, J. A. V., Gestão
e autonomia universitária: A experiência da UECE. Fortaleza: UECE, 2003. p.
176). A partir de 2004, a UECE deixou de oferecer vagas em seus vestibulares
para o curso de Ciências e implantou os cursos de Licenciatura em Ciências
Biológicas, Física, Matemática e Química. No caso específico de Tauá, foram
criados os cursos de Ciências Biológicas e Química.
(11) O Exame Nacional de Cursos (que ficou
conhecido como “Provão”) foi implantado pelo ministro Paulo Renato Souza, em
1996, para avaliar a aprendizagem dos cursos de graduação. Com as posses de
Lula (presidente da República) e de Cristovam Buarque (ministro da Educação),
mantém-se a defesa da avaliação externa às instituições de ensino superior, mas
altera-se a metodologia. Em 2004, já com o ministro Tarso Genro, foi implantado
o ENADE (Exame Nacional de Desempenho de Alunos), no âmbito do SINAES (Sistema
Nacional de Avaliação da Educação Superior).
(12)
Cf.
O POVO. Pedagogia de Tauá ganha conceito
"A" pela 2ª vez. Fortaleza, 18 dez. 2002. / LIMA, J. A. V.
Conceito A. Diário do Nordeste,
Fortaleza, 20 jan. 2003. Caderno 1, p. 2.
(13)
Cf.
LIMA, J. A. V. A experiência de gestão
da UECE e o princípio da autonomia universitária. 2002, 245f. Dissertação
(Mestrado em Gestão Educacional) – UI/UVA, Fortaleza, 2002. p. 155-161.
(14)
Os
artigos 45 e 46 da Lei nº 9.394/1996 não preveem a obrigatoriedade da
indissociabilidade de ensino e pesquisa e extensão por parte da instituições de
ensino superior.
(15)
Os
formandos da referida solenidade são os seguintes: curso de Pedagogia - Adriana Desidério Torquato, Aléssia Florêncio
Feitosa Martins, Argentina Cardoso e Silva, Aurineide Carvalho Feitosa, Dilma
Maria Lima, Dionísia Pereira de Sousa Filha, Eliane Santana de Sousa, Francisca
de Assis Leite Torres, Francisco Djalma Mendes Peixoto, Francisco Feitosa Lima
Neto, Isabel Maria Maia A. Leite Bonfim, Ismênia Carlos Rodrigues, Janaína
Cavalcante Gonçalves, José Fabrício Cavalcante Mota, Josimeiry Carlos Feitosa,
José Monteiro Neto, Júlio Marcos Siqueira Lima, Manoel Timóteo, Maria da Paz
Alves Lima, Maria Gomes Fernandes, Maria Helena A. Pedrosa Mota, Maria
Rozeleide de Oliveira, Maria Salete Vale Farias, Maria Veralice de O. Lima, Meire
Lúcia Alves da Silva, Mosiane Vale Farias, Nilton Moreira de Lima e Silva,
Patrícia Kércya Ferreira Barra, Rondinei Oliveira Loiola, Sônia Maria Maia
Amorim, Valdivânia Maria Furtado Bezerra, Valéria Rodrigues Loiola, Vicente de Paulo
Alves dos Santos e Waltecarlos Rodrigues dos Santos.
(16)
MARTINS
FILHO, A. O universal pelo regional:
definição de uma política universitária. 2. ed. Fortaleza: Imprensa
Universitária do Ceará, 1966. p. 253.