POR UM NOVO AMARILDO.
(João Álcimo Viana Lima, em 7/7/2014).
No dia 2 de julho de 1962, o já consagrado Pelé, à época com 21
anos, sofreu uma distensão muscular na coxa direita, aos 25 minutos do 1º
tempo, após ter desferido um petardo de fora da área. A lesão tirou-o da
partida contra a Tchecoslováquia e do restante daquela Copa do Mundo. Tratava-se
apenas da 2ª partida da fase de grupos. A seleção brasileira perdeu, portanto,
seu grande expoente na disputa por seu bicampeonato, em gramados chilenos.
54 anos e dois dias depois do drama vivido pelo “Rei” do futebol,
no Estádio Castelão, em Fortaleza, aos 40 minutos do 2º tempo, o craque Neymar,
de 22 anos, foi vítima de uma falta violenta do lateral colombiano Zúñiga, o
que provocou a fratura de sua 3ª vértebra lombar. Em jogo válido pelas quartas
de final, a Canarinho venceu a Colômbia por 2x1, mas a lesão tirou sua maior
referência (autor de quatro gols no certame) da disputa pelo hexacampeonato,
desta vez, em gramados brasileiros. Espero que a FIFA, tão implacável contra
dentadas, seja, também, rigorosa contra joelhadas criminosas.
Pelé foi vítima de sua própria força física e da determinação em
campo; enquanto Neymar, embora sem ter feito uma boa exibição contra os
colombianos, foi caçado covardemente e atingido pelas costas. Penso que agora,
assim como em 1962, o futebol, em sua maior competição do planeta, foi a grande
vítima pela exclusão de talentos diferenciados, que sempre ficam à espreita
para corresponder às expectativas do grande público.
Acrescento que ambos, Pelé e Neymar, foram revelados no Santos,
pelo qual conquistaram vários títulos. Pelé, após seus feitos na Copa de 1958,
transformou a camisa 10 em símbolo e referência de toda e qualquer equipe.
Neymar está na lista dos que herdaram o número da arte futebolística mundial.
Em seu caso, com muita justiça.
Voltemos a 1962: o técnico Aymoré Moreira escalou Amarildo em
substituição a Pelé. Após um empate sem gols contra os tchecos e com a
classificação indefinida, não obstante os demais craques daquele time (quase
todos campeões do mundo em 1958), o favoritismo cedeu lugar à desconfiança em
torno do escrete brasileiro. Mas, por muito pouco tempo. No jogo seguinte, o
Brasil venceu a Espanha, de virada, por 2x1, com exatos dois gols de Amarildo.
A partir de então, Nelson Rodrigues, utilizando-se do romancista russo
Dostoiévski, batizou-o de “Possesso”.
Sem Pelé, a “irresponsabilidade amável” de Garrincha, como diria
Carlos Drummond de Andrade, assumiu o protagonismo da equipe brasileira. Aquela
foi a Copa do Brasil e do Mané. Ele driblou, entortou, deu assistências, fez
gols (de cabeça, de fora da área e de dentro da área), bateu faltas, foi
expulso e absolvido, liderou o time, foi o melhor da Copa e sagrou-se bicampeão
mundial. Tudo, ao seu jeito. Quanto a Amarildo, ele, simplesmente, honrou a
vaga de Pelé. Na partida final, novamente contra a Tchecoslováquia, foi dele o
gol de empate, na vitória por 3x1.
Sem Neymar, mais uma vez os brasileiros temem pelo comportamento e
desempenho da Seleção. A “luz vermelha” acendeu novamente. Desta vez, com muito
mais razão. Numa compreensão cíclica, o que se espera é que algum atleta,
igualmente a Garrincha em 1962, assuma, agora, o papel de protagonista; bem
como, que tenhamos um novo Amarildo a substituir o nosso principal jogador.
Mas, Amarildo, exatamente ele, com um profundo senso de realismo,
em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, após a lesão de Neymar, tratou de
distinguir os atletas, os times e o “joio” do “trigo”. Vejamos o que ele disse:
"Não dá para comparar. Primeiro porque Pelé é Pelé e o Possesso é o
Possesso. Depois, em 1962, nós já sabíamos quem eram titulares e reservas.
Quando Pelé se machucou todos sabiam que eu entraria. Terceiro, a seleção de
1962 tinha muitos craques. Hoje, Neymar é o diferenciado. Será difícil achar um
substituto".
Não vejo como não concordar com Amarildo. A diferença do nível
técnico entre os dois elencos é abissal. À altura de Neymar, não temos ninguém.
Dentre as opções, Ramires é volante ofensivo, que faz as vezes de meia; William
é meia habilidoso, afeito a assistências aos seus companheiros, mas que não tem
a intimidade com o gol; Bernard é atacante que se movimenta bem pelos flancos,
tem velocidade e é o dono da camisa 20, o mesmo número de Amarildo em 1962.
Quer quem seja o escolhido, numa Copa caracterizada como “rodrigueana”,
conforme reportagem do jornal O Povo, o que se espera é que ele internalize,
com os sopros da força exterior que vagueia e permeia sobre o futebol, a
alegria e a técnica de Neymar e a altivez de Amarildo. Isso, guardadas as
diferenças e respeitada a impossibilidade de comparações.
Outra grande incógnita e preocupação recai sobre quem assumirá o
papel de protagonista. Oscar jogou muito bem o primeiro jogo (contra a
Croácia), mas nos próximos confrontos deu-nos a grande impressão de que se
tratou de um “alarme falso”. Hulk é o grande exemplo de que porte físico e
garra não bastam para brilhar em nossa seleção. Fred até agora tem tido
atuações pífias e indignas de um centroavante de ofício. Pelo visto, embora
historicamente seja estranho, a tendência ao protagonismo está mais para o
zagueiro David Luís, que tem sido o jogador brasileiro com melhores atuações:
autor de dois gols (nas oitavas e quartas de final), espírito de liderança e um
“capitão” sem braçadeira. Com um time visivelmente abalado emocionalmente, foi
ele quem abriu, com êxito, a série de cobrança de pênaltis contra o Chile.
Alguém se lembra de um zagueiro de área ter sido a principal referência de
nossa seleção?
O técnico Luís Felipe Scollari tem uma biografia vitoriosa,
incluindo a conquista do pentacampeonato mundial, em 2002. Naquele ano,
contrariando o País em peso, ele optou por não convocar Romário. Por outro
lado, ele centrou suas apostas em Ronaldo, em meio à incógnita sobre sua
performance, após duas cirurgias oriundas de graves lesões. Resultado: Ronaldo
foi o artilheiro da Copa e consolidou sua aura de “Fenômeno”. Felipão, por
várias vezes, mostrou-se um especialista nos campeonatos ao estilo mata-mata.
Não é demérito para sua biografia, mas se trata, efetivamente, de um cara de
muita sorte. Assim, o Brasil espera que Deus o ilumine na definição do
substituto de Neymar.
Que venha um novo Amarildo! Desta vez, não mais encarnando o
“Possesso”, mas, com o devido beneplácito de Dostoiévski, incorporando o poder
e a impiedade do “Grande inquisidor”, outro de seus personagens. Que venha o
hexa!
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Pelé saindo lesionado de campo, em 1962. |
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Garrincha comemorando o título da Copa de 1962 com Amarildo (camisa nº 20). |
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Fiódor Dostoiévski, escritor russo.
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