segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

"SEIS OU TREZE COISAS QUE EU APRENDI SOZINHO", DE MANOEL DE BARROS.

SEIS OU TREZE COISAS QUE EU APRENDI SOZINHO

(Manoel de Barros)

1.
Gravata de urubu não tem cor.
Fincando na sombra um prego ermo, ele nasce.
Luar em cima de casa exorta cachorro.
Em perna de mosca salobra as águas cristalizam.
Besouros não ocupam asas para andar sobre fezes.
Poeta é um ente que lambe as palavras e depois se alucina.
No osso da fala dos loucos têm lírios.

2.
Com cem anos de escória uma lata aprende a rezar.
Com cem anos de escombros um sapo vira árvore e cresce
por cima das pedras até dar leite.
Insetos levam mais de cem anos para uma folha sê-los.
Uma pedra de arroio leva mais de cem anos para ter murmúrios.
Em seixal de cor seca estrelas pousam despidas.
Mariposas que pousam em osso de porco preferem melhor as cores tortas.
Com menos de três meses mosquitos completam a sua eternidade.
Em ente enfermo de árvore, com menos de cem anos, perde o contorno das folhas.
Aranha com olho de estame no lodo se despedra.
Quando chove nos braços da formiga o horizonte diminui.
Os cardos que vivem nos pedrouços têm a mesma sintaxe que os escorpiões de areia.
A jia, quando chove, tinge de azul o seu coaxo.
Lagartos empernam as pedras de preferência no inverno.
O vôo do jaburu é mais encorpado do que o vôo das horas.
Besouro só entra em amavios se encontra a fêmea dele vagando por escórias...
A quinze metros do arco-íris o sol é cheiroso.
Caracóis não aplicam saliva em vidros; mas, nos brejos, se embutem até o latejo.
Nas brisas vem sempre um silêncio de garças.
Mais alto que escuro é orumor dos peixes.
Uma árvore bem gorjeada, com poucos segundos, passa a fazer parte dos pássaros que gorjeiam.
Quando a rã de cor palha está para ter - ela espicha os olhinhos para Deus.
De cada vinte calangos enlanguescidos por estrelas, quinze perdem o rumo das grotas.
Todas estas informações têm soberba desimportante científica - como andar de costas.

3.
Ilhota de pedra no meio de um corixo é de nome sarã.
Amanhecer de um sarã tem gala! Eu assisto:
Martim-pescador, de repente, no alto da água, arregaça o cuzinho e solta sua isca de guspe.
Peixe vai ver o que foi aquele guspe: antepara!
De veloz arrojo Martim-pescador frecha na água, e num átimo sobe -
O peixe atravessado no bicó!
As águas remansam e rezam.
Que esse martim-pescador é fela.

4.
Tem quatro teorias de árvore que eu conheço.
Primeira: que arbusto de monturo agüenta mais formiga.
Segunda: que uma planta de borra produz frutos ardentes.
Terceira: nas plantas que vingam por rachaduras lavra um poder mais lúbrico de antros.
Quarta: que há nas árvores avulsas uma assimilação maior de horizontes.

5.
A água passa por uma frase e por mim.
Macerações de sílabas, inflexões, elipses, refegos.
A boca desarruma os vocábulos na hora de falar
E os deixa em lanhos na beira da voz.

6.
O coró é bicho abléfaro - e sem engonços.
Habita encostado nos termos que lhe referem.
Tem o corpo transparente e lambe o próprio oco na fortuna
de que esse oco ainda seja a placenta em que morou.
O coró se suficienta.
Devora-se como um prato azedo de formigas.
E lambe até o algodão do nariz em que está morto.

7.
O rio atravessou um besouro pelo meio - e uma falena.
Era um besouro de âmbar, hosno
E uma falena de Ocaso. O besouro
Enfiou na falena seu aguilhão
E a trouxe para seu esconderijo.
Depois esplendorou-a toda antes de comê-la.

8.
Uma chuva é íntima
Se o homem a vê de uma parede umedecida de moscas;
Se aparecem besouros nas folhagens;
Se as lagartixas se fixam nos espelhos;
Se as cigarras se perdem de amor pelas árvores;
E o escuro se umedeça em nosso corpo.

9.
De noite passarinho é órfão
para voar. Não enxerga
nem o pai das vacas
nem o adágio dos arroios.
Seu olho de ovo emaranha com folhas.
No escuro não sabe medir direção e trompa nos paus.
Passarinho é poeta de arrebol.

10.
Em passar sua vagínula sobre as pobres coisas do chão, a
lesma deixa risquinhos líquidos...
A lesma influi muito em meu desejo de gosmar sobre as
palavras
Neste coito com letras!
Na áspera secura de uma pedra a lesma esfrega-se
Na avidez de deserto que é a vida de uma pedra a lesma
escorre. . .
Ela fode a pedra.
Ela precisa desse deserto para viver.

11.
Tem assas mas não entoa.
Penso que o papel o aceite.
Cuido que não seja nada.
Quase que não abre olho.
Acho que será de pano.
Falam que passou de lata.
No lugar de haver boca está o espanto.
Ri por não ter rosto.

12.
Que a palavra parede não seja símbolo
de obstáculos à liberdade

nem de desejos reprimidos
nem de proibições na infância,
etc. (essas coisas que acham os
reveladores de arcanos mentais)
Não.
Parede que me seduz é de tijolo, adobe
preposto ao abdômen de uma casa.
Eu tenho um gosto rasteiro de
ir por reentrâncias
baixar em rachaduras de paredes
por frinchas, por gretas - com lascívia de hera.
Sobre o tijolo ser um lábio cego.
Tal um verme que iluminasse.

13.

Seu França não presta pra nada -
Só pra tocar violão.
De beber água no chapéu as formigas já sabem quem ele é.
Não presta pra nada.
Mesmo que dizer:
- Povo que gosta de resto de sopa é mosca.
Disse que precisa de não ser ninguém toda vida.
De ser o nada desenvolvido.
E disse que o artista tem origem nesse ato suicida.

Lugar em que há decadência.
Em que as casas começam a morrer e são habitadas por
morcegos.
Em que os capins lhes entram, aos homens, casas portas
adentro.
Em que os capins lhes subam pernas acima, seres adentro.
Luares encontrarão só pedras mendigos cachorros.
Terrenos sitiados pelo abandono, apropriados à indigência.
Onde os homens terão a força da indigência.

(Grifos meus).

Manoel de Barros

"CADA MINUTO QUE MORRE, MATA UM PEDAÇO DE MIM", DE DIDEUS SALES.

CADA MINUTO QUE MORRE, MATA UM PEDAÇO DE MIM

(Dideus Sales)

Vivi toda a exuberância
Dos dias de juventude
Cheio de gozo e saúde
Amores em abundância,
Não calculei a distância
Do auge até o meu fim,
Hoje extenuado, enfim,
Percebo que o tempo corre.
Cada minuto que morre,
Mata um pedaço de mim.

Sorvi o halo das fãs
Em esplendorosas noites,
Fiz incontáveis pernoites
Em divãs de cortesãs;
Eis que em minhas manhãs
Alvacentas de marfim,
Cheirosas como jasmim
Eterno eclipse percorre.
Cada minuto que morre,
Mata um pedaço de mim.

O tempo causou-me estragos,
(Esse ditador esquálido)
Para orgias sou inválido,
Vivo sedento de afagos,
Meus olhos viraram lagos,
Minha pele de cetim
Está áspera que nem brim,
Meu Deus, por que isso ocorre?
Cada minuto que morre,
Mata um pedaço de mim.

O sol da minha existência
Já pendeu para o ocaso,
Também não está tão raso
Meu poço de paciência;
Por minha vã preferência
Às noitadas de festim,
Até mesmo Querubim
Se evoco, não me socorre.
Cada minuto que morre,
Mata um pedaço de mim.

Contenho a ansiedade
Pra não morrer de desgosto,
Vejo impressos em meu rosto
Sinais de debilidade;
Me alimento de saudade,
Vivo sem fazer motim,
Sei que fui o estopim
Desse incêndio que transcorre.
Cada minuto que morre,
Mata um pedaço de mim.

Não bebo mais os olores
Das flores nas primaveras,
Ardem em meu peito as crateras
Do vulcão dos dissabores,
Para alívio dessas dores,
Nem um chá de alecrim,
Em mesa de botequim
Afogo as mágoas em porre.
Cada minuto que morre,
Mata um pedaço de mim.

A mais doce melodia
Não me traz suavidade,
Estou imerso em saudade,
Tristeza e melancolia,
Voou minha alegria,
Emurcheceu meu jardim,
Quem hoje me vê assim,
Baixa o rosto, o pranto escorre.
Cada minuto que morre,
Mata um pedaço de mim.

Cresceram minhas madeixas
Ao descambar pro outono,
Fugiram volúpia e sono,
Surgiram mágoas e queixas,
Minhas rimas são endechas
Sonorizando o meu fim,
Essa sensação ruim
Dos meus excessos decorre.
Cada minuto que morre,
Mata um pedaço de mim.

Dideus Sales

domingo, 5 de fevereiro de 2017

"INHAMUNS", DE ALBERTO PORFÍRIO.

INHAMUNS

(Alberto Porfírio)

Inhamuns foi a terra das boiadas
Quando ainda não tinha o caminhão
Seus vaqueiros faziam curraladas
Que era a festa maior da região.

Tangerinos andavam nas estradas
Empurrando as boiadas do patrão
Assobios, aboios e toadas
Torturavam do amo o coração.

Hoje o gado viaja é de jamanta
Os peões já não cantam, o que canta
São o xexéu, a graúna, o sabiá.

Quem quiser ser feliz demore ali
Pelas margens saudáveis do Trici
Na cidade bonita de Tauá!

Alberto Porfírio


"BRASIL RICO DE CULTURA, MAS POBRE DE CONSCIÊNCIA", DE JOÃO ÁLCIMO.

BRASIL RICO DE CULTURA, MAS POBRE DE CONSCIÊNCIA

(João Álcimo Viana)


Brasil da raça nativa,
Com seus ritos e sistemas,
Sem Estado e sem algemas,
Mas com força criativa;
Porém o branco lhe priva
Com chumbo e com penitência,
Destruindo sua essência
No jugo de outra estrutura.
Brasil rico de cultura
Mas pobre de consciência.

Brasil que foi construído
Com o negro escravizado,
Que nos deixou um legado
Que não será destruído;
Mas não é reconhecido
E é posto na indigência,
Recebendo com freqüência
O açoite da escravatura.
Brasil rico de cultura
Mas pobre de consciência.

Brasil berço de Machado,
O ícone do Realismo;
Brasil de um regionalismo
Descrito por Jorge Amado;
Brasil de Celso Furtado,
Que no mundo é referência;
Mas que despreza a ciência
E ofusca a literatura.
Brasil rico de cultura
Mas pobre de consciência.

Brasil palco do forró,
De Luís, Rei do Baião,
De Catulo da Paixão,
Pátria-mãe do carimbo;
Mas “eguinha pocotó”,
Sem conteúdo e cadência
Faz Chacrinha com veemência
Tremer-se na sepultura.
Brasil rico de cultura
Mas pobre de consciência.

Brasil que deixa à mercê
A cultura popular
E prefere se ligar
Na escória do BBB;
Meu Brasil onde a TV
Pra conquistar audiência
Apela para a indecência
Com pífia desenvoltura.
Brasil rico de cultura
Mas pobre de consciência.

Brasil que foi planejado
Por Rui e Gonçalves Ledo,
Por Frei Caneca e Tancredo
E por JK governado;
Mas que foi penalizado
Com máfias na Previdência
E com a grave conseqüência
Dos porões da ditadura.
Brasil rico de cultura
Mas pobre de consciência.

Brasil de pátrios projetos,
Como os de Darcy Ribeiro,
Mas buscou no estrangeiro
Transplantes vis/incorretos;
Brasil dos analfabetos,
Evasão e repetência,
Mas destinou a tendência
De Paulo Freire à censura.
Brasil rico de cultura
Mas pobre de consciência.

Brasil templo do “Padim” –
O Padre Cícero Romão,
Mas que teve o seu sermão
Cassado por Dom Joaquim;
Brasil que deu triste fim
Com as marcas da onipotência
A uma nova experiência
Que Conselheiro inaugura.
Brasil rico de cultura
Mas pobre de consciência.

Brasil do Norte/Nordeste,
De Amazônia e Sertões,
Mas que sofre restrições
Em prol do Sul e Sudeste;
E o nosso “cabra-da-peste”
Padece com a negligência,
Restando-lhe a Providência
Para ungir sua bravura.
Brasil rico de cultura
Mas pobre de consciência.

Brasil das contradições -
Riqueza e desigualdade;
Brasil da diversidade,
Mas das discriminações;
Para as novas gerações
O teor da Inconfidência
Pauta-se na delinquência,
Na propina e na usura.
Brasil rico de cultura
Mas pobre de consciência.

João Álcimo Viana

"ALENCAR", DE MACHADO DE ASSIS.

ALENCAR

(Machado de Assis)

Hão de os anos volver, – não com as neves
De alheios climas, de geladas cores;
Hão de os anos volver, mas como as flores,
Sobre o teu nome, vívidos e leves...

Tu, cearense musa, que os amores
Meigos e tristes, rústicos e breves,
Da indiana escreveste, – ora os escreves
Nos volumes dos pátrios esplendores.

E ao tornar este sol, que te há levado,
Já não acha a tristeza. Extinto é o dia
Da nossa dor, do nosso amargo espanto.


Porque o tempo implacável e pausado,
Que o homem consumiu na terra fria,
Não consumiu o engenho, a flor, o encanto.


(Homenagem ao escrito José de Alencar).

Machado de Assis

"GEOMETRIA DOS VENTOS", DE RACHEL DE QUEIROZ.

GEOMETRIA DOS VENTOS

(Rachel de Queiroz)


Eis que temos aqui a Poesia,
a grande Poesia.
Que não oferece signos
nem linguagem específica, não respeita
sequer os limites do idioma. Ela flui, como um rio.
Como o sangue nas artérias,
tão espontânea que nem se sabe como foi escrita.
E ao mesmo tempo tão elaborada -
feito uma flor na sua perfeição minuciosa,
um cristal que se arranca da terra
já dentro da geometria impecável
da sua lapidação.
Onde se conta uma história,
onde se vive um delírio; onde a condição humana exacerba,
até à fronteira da loucura,
junto com Vincent e os seus girassóis de fogo,
à sombra de Eva Braun, envolta no mistério ao
mesmo tempo
fácil e insolúvel da sua tragédia.
Sim, é o encontro com a Poesia.

Rachel de Queiroz

"TAUÁ / MARIA FARINHA", DE AURÉLIO LOIOLA.

TAUÁ / MARIA FARINHA

(Aurélio Loiola)

A terra que se ama
é tal qual a mulher amada:
companheira do dia-a-dia,
sol, calor, noite de luar,
estrela, constelação,
bússola,
harmonia, bem-estar,
um carrilhão de poesia!...

Pulsa, vibra em minha vida
tal sentimento profundo:
Tauá é a mais querida
deste planeta do mundo.

Dos Inhamuns, a riqueza,
no comércio, agricultura,
tem Faculdade, “beleza”,
é um polo da Cultura.

Por lá eu era roceiro,
também vaqueiro romântico...
por aqui, eu sou praieiro
junto ao Oceano Atlântico.

Hoje, esta é minha roça:
bela Maria Farinha –
tem mar, coqueiros, palhoça...
Majestade princesinha.

São minhas terras queridas:
Tauá, Maria Farinha:
aquela, berço, torcidas ...
esta, hoje, é Pátria minha.

Saudade é doce coceira,
fervente que nem panela,
mexe, mexe a vida inteira
e ninguém vive sem ela...

Sou vaqueiro da saudade,
boiadeiro do sertão,
cultivo a fraternidade
com profunda devoção.

Dos Inhamuns, a Princesa,
minha querida Tauá,
tem encanto, tem beleza,
orgulho do Ceará.

É Tauá, cidade bela,
a terra do meu cantar;
sua gente mui singela,
um pedaço do luar...

Mexe com a gente a saudade,
que alegra e nos faz bem,
visão de felicidade
esta lembrança de alguém.

Velha Fazenda Bezerros,
o meu torrão mui amado,
mesmo bastante distante,
sou por ti apaixonado.

Quando mais ele me amou,
eu deixei o meu sertão;
mas ele não me deixou:
é de sangue, um irmão.

Adeus, querido sertão!
Outra missão me chamava –
continuo preso a ti,
longe de tudo que amava.

Aurélio Loiola