segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

"CADA MINUTO QUE MORRE, MATA UM PEDAÇO DE MIM", DE DIDEUS SALES.

CADA MINUTO QUE MORRE, MATA UM PEDAÇO DE MIM

(Dideus Sales)

Vivi toda a exuberância
Dos dias de juventude
Cheio de gozo e saúde
Amores em abundância,
Não calculei a distância
Do auge até o meu fim,
Hoje extenuado, enfim,
Percebo que o tempo corre.
Cada minuto que morre,
Mata um pedaço de mim.

Sorvi o halo das fãs
Em esplendorosas noites,
Fiz incontáveis pernoites
Em divãs de cortesãs;
Eis que em minhas manhãs
Alvacentas de marfim,
Cheirosas como jasmim
Eterno eclipse percorre.
Cada minuto que morre,
Mata um pedaço de mim.

O tempo causou-me estragos,
(Esse ditador esquálido)
Para orgias sou inválido,
Vivo sedento de afagos,
Meus olhos viraram lagos,
Minha pele de cetim
Está áspera que nem brim,
Meu Deus, por que isso ocorre?
Cada minuto que morre,
Mata um pedaço de mim.

O sol da minha existência
Já pendeu para o ocaso,
Também não está tão raso
Meu poço de paciência;
Por minha vã preferência
Às noitadas de festim,
Até mesmo Querubim
Se evoco, não me socorre.
Cada minuto que morre,
Mata um pedaço de mim.

Contenho a ansiedade
Pra não morrer de desgosto,
Vejo impressos em meu rosto
Sinais de debilidade;
Me alimento de saudade,
Vivo sem fazer motim,
Sei que fui o estopim
Desse incêndio que transcorre.
Cada minuto que morre,
Mata um pedaço de mim.

Não bebo mais os olores
Das flores nas primaveras,
Ardem em meu peito as crateras
Do vulcão dos dissabores,
Para alívio dessas dores,
Nem um chá de alecrim,
Em mesa de botequim
Afogo as mágoas em porre.
Cada minuto que morre,
Mata um pedaço de mim.

A mais doce melodia
Não me traz suavidade,
Estou imerso em saudade,
Tristeza e melancolia,
Voou minha alegria,
Emurcheceu meu jardim,
Quem hoje me vê assim,
Baixa o rosto, o pranto escorre.
Cada minuto que morre,
Mata um pedaço de mim.

Cresceram minhas madeixas
Ao descambar pro outono,
Fugiram volúpia e sono,
Surgiram mágoas e queixas,
Minhas rimas são endechas
Sonorizando o meu fim,
Essa sensação ruim
Dos meus excessos decorre.
Cada minuto que morre,
Mata um pedaço de mim.

Dideus Sales

domingo, 5 de fevereiro de 2017

"INHAMUNS", DE ALBERTO PORFÍRIO.

INHAMUNS

(Alberto Porfírio)

Inhamuns foi a terra das boiadas
Quando ainda não tinha o caminhão
Seus vaqueiros faziam curraladas
Que era a festa maior da região.

Tangerinos andavam nas estradas
Empurrando as boiadas do patrão
Assobios, aboios e toadas
Torturavam do amo o coração.

Hoje o gado viaja é de jamanta
Os peões já não cantam, o que canta
São o xexéu, a graúna, o sabiá.

Quem quiser ser feliz demore ali
Pelas margens saudáveis do Trici
Na cidade bonita de Tauá!

Alberto Porfírio


"BRASIL RICO DE CULTURA, MAS POBRE DE CONSCIÊNCIA", DE JOÃO ÁLCIMO.

BRASIL RICO DE CULTURA, MAS POBRE DE CONSCIÊNCIA

(João Álcimo Viana)


Brasil da raça nativa,
Com seus ritos e sistemas,
Sem Estado e sem algemas,
Mas com força criativa;
Porém o branco lhe priva
Com chumbo e com penitência,
Destruindo sua essência
No jugo de outra estrutura.
Brasil rico de cultura
Mas pobre de consciência.

Brasil que foi construído
Com o negro escravizado,
Que nos deixou um legado
Que não será destruído;
Mas não é reconhecido
E é posto na indigência,
Recebendo com freqüência
O açoite da escravatura.
Brasil rico de cultura
Mas pobre de consciência.

Brasil berço de Machado,
O ícone do Realismo;
Brasil de um regionalismo
Descrito por Jorge Amado;
Brasil de Celso Furtado,
Que no mundo é referência;
Mas que despreza a ciência
E ofusca a literatura.
Brasil rico de cultura
Mas pobre de consciência.

Brasil palco do forró,
De Luís, Rei do Baião,
De Catulo da Paixão,
Pátria-mãe do carimbo;
Mas “eguinha pocotó”,
Sem conteúdo e cadência
Faz Chacrinha com veemência
Tremer-se na sepultura.
Brasil rico de cultura
Mas pobre de consciência.

Brasil que deixa à mercê
A cultura popular
E prefere se ligar
Na escória do BBB;
Meu Brasil onde a TV
Pra conquistar audiência
Apela para a indecência
Com pífia desenvoltura.
Brasil rico de cultura
Mas pobre de consciência.

Brasil que foi planejado
Por Rui e Gonçalves Ledo,
Por Frei Caneca e Tancredo
E por JK governado;
Mas que foi penalizado
Com máfias na Previdência
E com a grave conseqüência
Dos porões da ditadura.
Brasil rico de cultura
Mas pobre de consciência.

Brasil de pátrios projetos,
Como os de Darcy Ribeiro,
Mas buscou no estrangeiro
Transplantes vis/incorretos;
Brasil dos analfabetos,
Evasão e repetência,
Mas destinou a tendência
De Paulo Freire à censura.
Brasil rico de cultura
Mas pobre de consciência.

Brasil templo do “Padim” –
O Padre Cícero Romão,
Mas que teve o seu sermão
Cassado por Dom Joaquim;
Brasil que deu triste fim
Com as marcas da onipotência
A uma nova experiência
Que Conselheiro inaugura.
Brasil rico de cultura
Mas pobre de consciência.

Brasil do Norte/Nordeste,
De Amazônia e Sertões,
Mas que sofre restrições
Em prol do Sul e Sudeste;
E o nosso “cabra-da-peste”
Padece com a negligência,
Restando-lhe a Providência
Para ungir sua bravura.
Brasil rico de cultura
Mas pobre de consciência.

Brasil das contradições -
Riqueza e desigualdade;
Brasil da diversidade,
Mas das discriminações;
Para as novas gerações
O teor da Inconfidência
Pauta-se na delinquência,
Na propina e na usura.
Brasil rico de cultura
Mas pobre de consciência.

João Álcimo Viana

"ALENCAR", DE MACHADO DE ASSIS.

ALENCAR

(Machado de Assis)

Hão de os anos volver, – não com as neves
De alheios climas, de geladas cores;
Hão de os anos volver, mas como as flores,
Sobre o teu nome, vívidos e leves...

Tu, cearense musa, que os amores
Meigos e tristes, rústicos e breves,
Da indiana escreveste, – ora os escreves
Nos volumes dos pátrios esplendores.

E ao tornar este sol, que te há levado,
Já não acha a tristeza. Extinto é o dia
Da nossa dor, do nosso amargo espanto.


Porque o tempo implacável e pausado,
Que o homem consumiu na terra fria,
Não consumiu o engenho, a flor, o encanto.


(Homenagem ao escrito José de Alencar).

Machado de Assis

"GEOMETRIA DOS VENTOS", DE RACHEL DE QUEIROZ.

GEOMETRIA DOS VENTOS

(Rachel de Queiroz)


Eis que temos aqui a Poesia,
a grande Poesia.
Que não oferece signos
nem linguagem específica, não respeita
sequer os limites do idioma. Ela flui, como um rio.
Como o sangue nas artérias,
tão espontânea que nem se sabe como foi escrita.
E ao mesmo tempo tão elaborada -
feito uma flor na sua perfeição minuciosa,
um cristal que se arranca da terra
já dentro da geometria impecável
da sua lapidação.
Onde se conta uma história,
onde se vive um delírio; onde a condição humana exacerba,
até à fronteira da loucura,
junto com Vincent e os seus girassóis de fogo,
à sombra de Eva Braun, envolta no mistério ao
mesmo tempo
fácil e insolúvel da sua tragédia.
Sim, é o encontro com a Poesia.

Rachel de Queiroz

"TAUÁ / MARIA FARINHA", DE AURÉLIO LOIOLA.

TAUÁ / MARIA FARINHA

(Aurélio Loiola)

A terra que se ama
é tal qual a mulher amada:
companheira do dia-a-dia,
sol, calor, noite de luar,
estrela, constelação,
bússola,
harmonia, bem-estar,
um carrilhão de poesia!...

Pulsa, vibra em minha vida
tal sentimento profundo:
Tauá é a mais querida
deste planeta do mundo.

Dos Inhamuns, a riqueza,
no comércio, agricultura,
tem Faculdade, “beleza”,
é um polo da Cultura.

Por lá eu era roceiro,
também vaqueiro romântico...
por aqui, eu sou praieiro
junto ao Oceano Atlântico.

Hoje, esta é minha roça:
bela Maria Farinha –
tem mar, coqueiros, palhoça...
Majestade princesinha.

São minhas terras queridas:
Tauá, Maria Farinha:
aquela, berço, torcidas ...
esta, hoje, é Pátria minha.

Saudade é doce coceira,
fervente que nem panela,
mexe, mexe a vida inteira
e ninguém vive sem ela...

Sou vaqueiro da saudade,
boiadeiro do sertão,
cultivo a fraternidade
com profunda devoção.

Dos Inhamuns, a Princesa,
minha querida Tauá,
tem encanto, tem beleza,
orgulho do Ceará.

É Tauá, cidade bela,
a terra do meu cantar;
sua gente mui singela,
um pedaço do luar...

Mexe com a gente a saudade,
que alegra e nos faz bem,
visão de felicidade
esta lembrança de alguém.

Velha Fazenda Bezerros,
o meu torrão mui amado,
mesmo bastante distante,
sou por ti apaixonado.

Quando mais ele me amou,
eu deixei o meu sertão;
mas ele não me deixou:
é de sangue, um irmão.

Adeus, querido sertão!
Outra missão me chamava –
continuo preso a ti,
longe de tudo que amava.

Aurélio Loiola

"OS ESTATUTOS DO HOMEM", DE THIAGO DE MELLO.

OS ESTATUTOS DO HOMEM

(Thiago de Mello)

Artigo I.
Fica decretado que agora vale a verdade. 
que agora vale a vida, 
e que de mãos dadas, 
trabalharemos todos pela vida verdadeira. 

Artigo II.
Fica decretado que todos os dias da semana, 
inclusive as terças-feiras mais cinzentas, 
têm direito a converter-se em manhãs de domingo. 

Artigo III.
Fica decretado que, a partir deste instante, 
haverá girassóis em todas as janelas, 
que os girassóis terão direito 
a abrir-se dentro da sombra; 
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, 
abertas para o verde onde cresce a esperança. 

Artigo IV.
Fica decretado que o homem 
não precisará nunca mais 
duvidar do homem. 
Que o homem confiará no homem 
como a palmeira confia no vento, 
como o vento confia no ar, 
como o ar confia no campo azul do céu. 

Parágrafo Único:
O homem confiará no homem 
como um menino confia em outro menino. 

Artigo V.
Fica decretado que os homens 
estão livres do jugo da mentira. 
Nunca mais será preciso usar 
a couraça do silêncio 
nem a armadura de palavras. 
O homem se sentará à mesa 
com seu olhar limpo 
porque a verdade passará a ser servida 
antes da sobremesa. 

Artigo VI.
Fica estabelecida, durante dez séculos, 
a prática sonhada pelo profeta Isaías, 
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos 
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora. 

Artigo VII.
Por decreto irrevogável fica estabelecido 
o reinado permanente da justiça e da claridade, 
e a alegria será uma bandeira generosa 
para sempre desfraldada na alma do povo. 

Artigo VIII.
Fica decretado que a maior dor 
sempre foi e será sempre 
não poder dar-se amor a quem se ama 
e saber que é a água 
que dá à planta o milagre da flor. 

Artigo IX.
Fica permitido que o pão de cada dia 
tenha no homem o sinal de seu suor. 
Mas que sobretudo tenha sempre 
o quente sabor da ternura. 

Artigo X.
Fica permitido a qualquer pessoa, 
a qualquer hora da vida, 
o uso do traje branco. 

Artigo XI.
Fica decretado, por definição, 
que o homem é um animal que ama 
e que por isso é belo. 
muito mais belo que a estrela da manhã. 

Artigo XII.
Decreta-se que nada será obrigado nem proibido. 
tudo será permitido, 
inclusive brincar com os rinocerontes 
e caminhar pelas tardes 
com uma imensa begônia na lapela. 

Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida: 
amar sem amor. 

Artigo XIII.
Fica decretado que o dinheiro 
não poderá nunca mais comprar 
o sol das manhãs vindouras. 
Expulso do grande baú do medo, 
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal 
para defender o direito de cantar 
e a festa do dia que chegou. 

Artigo Final.
Fica proibido o uso da palavra liberdade. 
a qual será suprimida dos dicionários 
e do pântano enganoso das bocas. 
A partir deste instante 
a liberdade será algo vivo e transparente 
como um fogo ou um rio, 
e a sua morada será sempre 
o coração do homem.

Thiago de Mello