A MORDIDA DE SUÁREZ SOB A ÓTICA DE NELSON RODRIGUES.
(João Álcimo Viana Lima, em 26/6/2014).
O jornal O Povo, na
edição de 22/6/2014, publicou instigante matéria com o título “Uma Copa do
Mundo rodrigueana”, assinada pelo jornalista Henrique Araújo e colaboração de
Erico Firmo. Segundo estes: “A onipresença do anjo pornográfico [Nelson
Rodrigues] é o certificado de que esta não é a Copa de Balotelli, Cristiano
Ronaldo, Messi, Robben, Campbell ou Neymar. Imponderável, passional e cheia de
excessos, esta é a Copa de Nelson”.
Conforme a
reportagem, “jogadas como o peixinho de Van Persie e a cabeçada de Suárez não
têm outra interpretação senão a de que uma nuvem de paranormalidade estacionou
sobre o Brasil desde o dia 12 de junho”. Além disso, questiona-se: “Como
explicar que a seleção chilena tenha despachado, no maior palco do futebol
mundial, o Maracanã, a majestosa Espanha, encerrando não apenas a dinastia
“tiki-taka”, responsável por tantas conquistas, mas levando a torcida a
despejar vaias e olés?”
Com dez dias do
evento máximo do futebol, Henrique Rodrigues e Erico Firmo destacaram que as
profecias, as máximas e os adjetivos rodrigueanos estavam norteando (ou
desnorteando) a Copa do Mundo 2014. Contudo, dois dias após a reportagem, a
presença do “Anjo pornográfico” em gramados brasileiros (e fora dele),
revelou-se com mais clarividência e contundência. A revelação teve o uruguaio
Luis Suárez, como o ungido, o algoz e a vítima, ao mesmo tempo.
Num contexto que
envolve "heroísmo" e "dramaticidade", o cara que se
recuperou de uma cirurgia realizada nos meniscos, no final de maio deste ano,
assistiu do banco de reservas a Celeste perder de 3x1 para o azarão Costa Rica.
No jogo seguinte, como titular, fez os dois gols na dramática vitória de 2x1
contra a Inglaterra. Um dos gols – o de cabeça – teve semelhança com o 2º gol
de Pelé e o último do Brasil, na vitória de 5x2 sobre a Suécia, na final da
Copa de 1958.
Em 24 de junho, na
batalha de Natal, entre duas seleções campeãs do mundo, que lutavam pela 2ª
vaga do grupo D, haja vista que a seleção costarriquenha já havia se
classificado, para as oitavas de final, com uma rodada de antecedência, Suárez
conseguiu, a um só tempo, a "glória" e a "delinquência".
Uruguai venceu a Itália por 1x0, com um gol aos 36 do 2º tempo, mas ele (o mais
festejado e temido), resolveu mostrar a artilharia de sua arcada dentária, aplicando
uma mordida no zagueiro italiano Chiellini. O árbitro não viu a grotesca cena,
mas após o jogo, a imprensa e a FIFA foram implacáveis com o goleador uruguaio,
que foi suspenso por nove jogos e ficou de fora do restante deste Mundial.
Com um episódio e
um desfecho desses, só mesmo recorrendo ao ardoroso torcedor do Fluminense e
que via no Brasil uma “pátria de chuteiras”, a cada entrada da seleção
brasileira em campo. Na crônica “O divino delinquente”, publicada no jornal O
Globo, em 18/11/1963, Nelson Rodrigues fez a defesa do atacante Almir
Pernambuquinho, do Santos, que na vitória de 1x0 sobre o Milan, acertou uma
botinada no brasileiro Amarildo (campeão do mundo em 1962) e cavou o pênalti,
convertido em gol (o único da partida) pelo lateral Dalmo. O Santos se sagrou
bicampeão mundial de clubes, mas Almir foi criticado pela imprensa por seus
lances violentos contra jogadores do clube italiano.
Abaixo, transcrevo
alguns trechos da referida crônica, com grifos meus em negrito:
- “A mais
sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana. Às vezes, num corner
mal ou bem batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural.”
- “O match Chile x
Itália, em 62, foi canibalesco. Os adversários só faltavam chupar as carótidas
uns dos outros. Em 58, no match Suécia x Alemanha, os 22 jogadores
agrediram-se a dentadas. Nós é que vamos exigir, de um jogo de futebol, a
cerimônia, a polidez, a correção de uma sessão da Câmara dos Comuns?”
- “Mas há o ser
humano por trás da bola, e digo mais: — a bola é um reles, um ínfimo, um
ridículo detalhe. O que procuramos no futebol é o drama, é a tragédia, é o
horror, é a compaixão.”
- [Sobre o
Santos] “Nenhuma equipe terrena pode jogar tanto sem se morrer.” [Dá
para aplicar a frase à seleção uruguaia?]
Resumindo: No
contraponto das críticas, Nelson Rodrigues adicionou o adjetivo “divino” para
definir a suposta "delinquência" de Almir.
Imaginemos, se vivo
fosse, como seria a reação do grande e polêmico cronista e dramaturgo, após a
decisão da FIFA de eliminar Suárez da Copa? Sob a ótica rodrigueana, como pode
ser classificada a célebre mordida? Trata-se de mais um exemplo da "divina
delinquência" no futebol?
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Cena da mordida em Chiellini: "Suárez conseguiu, a um só tempo, a glória e a delinquência". |
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Nelson Rodrigues: "A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana". |