(Discurso proferido por João Álcimo Viana Lima na solenidade de homenagem à primeira turma de formandos do CECITEC, em 30/8/2019)
Em uma de
suas composições, Noel Rosa e Oswaldo Gogliano descreveram o seguinte cenário: “Seu
garçom, faça o favor de me trazer depressa / uma boa média que não seja
requentada, / um pão bem quente com manteiga à beça, / um guardanapo e um copo
d'água bem gelada; / feche a porta da direita com muito cuidado, / que não estou
disposto a ficar exposto ao sol; / vá perguntar ao seu freguês do lado / qual
foi o resultado do futebol [...]”.
A composição musical “Conversa de botequim”,
gravada por Noel Rosa em 1935, retrata o tempo e o mundo de seu compositor
intérprete, onde a malandragem e a boemia carioca eram por ele exaltadas,
cantadas e vivenciadas. Nesse contexto, o botequim se convertia para muitos em
parada diária e obrigatória, sobrando para os garçons muita conversa e várias
exigências de seus clientes. 60 anos depois, no sertão nordestino, os botequins
foram alçados à condição de ambientes, cujas conversas seriam impactadas pela presença
da instituição universitária em seu território. É que o reitor fundador do
Centro de Educação, Ciências e Tecnologia da Região dos Inhamuns (CECITEC)
enfatizou que: “Quando uma universidade se instala em uma cidade mudam até as
conversas de botequim”.
A frase do professor Paulo de
Melo Jorge Filho (Paulo Petrola), que ilustrou a justificativa para a
implantação do CECITEC, manifesta a crença no potencial transformador de uma
instituição universitária. No Sertão dos Inhamuns, essa visão gerou expectativas
em relação aos impactos que o Campus da
UECE proporcionaria à educação e ao desenvolvimento socioeconômico dos
municípios de sua abrangência.
À época, o então Reitor,
asseverou: “Se não temos, na região, um Curso Superior, toda a juventude, a
mais inteligente, a mais brilhante, é coagida, é obrigada, é forçada a emigrar.
Vão fazer os cursos noutros locais e não voltam! Com ela vão as riquezas para
outras regiões, as quais poderiam ser produzidas equitativamente. Permanecerão
os que não têm as mesmas condições físicas, o mesmo ímpeto de vontade, de
liderança”[1].
Portanto, uma microrregião não
pode ser condenada à ausência de instituições por conta de sua posição
geográfica; pelo contrário, corroborando a óptica do professor Petrola, são os
investimentos estratégicos que contribuirão para
a reversão de um quadro histórico de isolamento. Nessa conjuntura, o poder
público e a universidade, em particular, devem assumir, a partir de suas
atividades, um papel de liderança e de indução e propulsão do desenvolvimento e
da sustentabilidade microrregional. Nesse sentido, configura-se para a
instituição universitária o lema proposto pelo professor Antônio Martins Filho:
“o universal pelo regional”[2]. Com efeito, sem
negligenciar com seus princípios históricos, a universidade deve estar atenta
com o meio no qual está inserida.
Para a criação do CECITEC, a
Administração Superior da UECE conseguiu significativas adesões de autoridades,
dentre elas o então líder do Governo estadual, o ex-deputado, natural de Tauá, Júlio
Gonçalves Rêgo, bem como engajou a comunidade local nos trabalhos
principiantes. Com esse espirito participativo foi criado um grupo de apoio e
promovido o seminário “Os Inhamuns no Desenvolvimento do Ceará”, em 26 de
novembro de 1993. Referido grupo foi composto por educadores e gestores ligados
às prefeituras municipais e secretaria da Educação do Estado, além de
representantes de órgãos não governamentais e de voluntários, sob a coordenação
da senhora Maria Dolores de Andrade Feitosa.
A Resolução nº 743/94,
deliberada pelo Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE), em 3 de maio de
1994, autorizou a Universidade a implantar os cursos de Ciências e Pedagogia,
ambos de Licenciatura Plena. Entretanto, para viabilizar o início do
funcionamento do CECITEC, que se concretizou em 19 de junho de 1995, a UECE
empreendeu uma série de outras ações, dentre as quais podem ser destacadas:
a) A
obtenção de sede própria, em Tauá (cidade sede do Sertão dos Inhamuns), em
abril de 1994;
b) o
lançamento oficial do CECITEC, em setembro de 1994;
c) a
realização de curso pré-vestibular, de outubro a dezembro de 1994;
d) a
realização de concurso vestibular, em janeiro de 1995;
e) a
realização de concurso de provas e títulos para professores, em março de 1995;
f) a minha
nomeação para diretor do Centro, em maio de 1995.
Em diagnóstico elaborado pelo
Grupo de Apoio, no final de 1993, constam os seguintes dados: “Temos um quadro
de docentes onde a maioria é habilitada para o 1º grau menor, ocasionando assim
uma situação contraditória de excesso e carência do professor ao mesmo tempo,
como também o acúmulo de disciplinas para o docente de 2º grau (polivalência no
2º grau)”. Referido documento detalhou um cenário bastante desolador: “A
docência das séries iniciais da rede municipal da Região é composta de leigos
que não concluíram nem mesmo o 1º grau menor. A nível regional temos o 2º grau
ensejando as seguintes habilitações profissionais: Magistério do 1º grau (de 1ª
a 4ª série e Estudos Adicionais 5ª e 6ª série), Assistente de Administração,
Contabilidade como também o 2º grau sem habilitação”[3].
Com base em evidências
documentais e testemunhais, pode-se inferir que um conjunto de fatores foi
determinante para que as licenciaturas de Ciências e Pedagogia fossem
selecionadas como os primeiros cursos do CECITEC, tais como: a demanda real por
profissionais com formação superior para atuarem na educação básica da
microrregião; a tradição da UECE com os cursos de formação de professores em
suas unidades interioranas; e a existência dos dois cursos em outros campi da UECE.
O primeiro vestibular
(1995.1), em Tauá, registrou um número de 277 inscritos para as 160 vagas
ofertadas, ficando a concorrência em 1,73 candidatos por vaga. Inscreveram-se
129 para Ciências (46,57% dos inscritos) e 148 para Pedagogia (53,43% dos
inscritos). Em seguida, foram aprovados 89 vestibulandos, sendo 13 para
Pedagogia (manhã), 16 para Ciências (manhã), 25 para Pedagogia (noite) e 35
para Ciências (noite).
Havia no Sertão dos Inhamuns
uma demanda reprimida por cursos universitários. Esta foi refletida na média de
idade dos primeiros alunos do Centro. De acordo com o levantamento realizado
por seu controle acadêmico, a idade média dos 87 alunos matriculados, em
janeiro de 1995, era de 26,4 anos. Essa realidade foi bastante alterada 24 anos
depois, haja vista que em janeiro de 2019, os 77 calouros tinham em média 18,8
anos.
Convergindo com a dissertação
de mestrado de Kelly da Silva (2011), da Universidade Federal de Viçosa, na
qual ela investiga as relações de gênero no âmbito do curso de Pedagogia, este,
em Tauá, registrou, em seu primeiro vestibular, 100% entre os aprovados e
95,27% entre os inscritos de predominância feminina. Em depoimentos colhidos
juntas às ex-alunas da turma pioneira, foi destacada a convivência respeitosa e
colaborativa entre os dois cursos, mas que o universo exclusivamente feminino
suscitou-lhes brincadeiras com a rotulação de “florzinhas”, consideradas
amigáveis pelas entrevistadas. Por outro lado, verificou-se na primeira turma
de Ciências, que de seus 51 alunos aprovados no vestibular, a maioria era do sexo
masculino (56,86%).
Para o início de suas
atividades administrativas, o CECITEC contou com as presenças de servidores
públicos estaduais cedidos à FUNECE pela então Secretaria de Governo (SEGOV),
pela extinta EPACE (Empresa de Pesquisa Agropecuária do Ceará) e pela
Secretaria de Saúde. Assim, formou-se o primeiro corpo técnico-administrativo,
composto por Ana Maria Bezerra Gomes Lopes, Antônia Dolide Carvalho Jataí,
Carlos Antônio Soares Mota, Júlia Ribeiro Feitosa Lima (secretária) e Maria
Luísa Uchoa Castelo. Além dos funcionários cedidos por órgãos estaduais, foi
viabilizada a cessão, junto à Prefeitura Municipal de Tauá, de nove
funcionários (sete auxiliares de serviço e dois vigilantes) e a cessão de dois
servidores administrativos junto à Prefeitura Municipal de Parambu.
Sobre o período de janeiro a
19 de junho de 1995, Luisa Xavier de Oliveira (ex-aluna integrante da primeira
turma e ex-professora deste Centro) dá o seguinte testemunho: “Quando a gente
iniciou o ano em janeiro, a gente fez o vestibular e ficou na expectativa que
não tinha acontecido concurso para os professores [...]. Sei que não pôde se
viabilizar as aulas. Nós passamos o mês de janeiro até o mês de junho sem ter
aula. E eu me lembro que as duas primeiras cadeiras não foram com os
professores que haviam passado no concurso, mas com dois professores da UECE [de Fortaleza], que eram professores de
Matemática, o Hipólito [Peixoto], e o
que a gente chamava de Naná [Nascimento
Braga], que era o professor de Produção Textual. Nós passamos o período de
férias com esses dois professores”[4].
A solução encontrada com a
lotação momentânea dos experientes professores Hipólito Peixoto de Oliveira (do
CCT) e José Nascimento Soares Braga (do CH), resolveu, ao mesmo tempo, o
problema do início das aulas (cujo cronograma estava atrasado) e a carência em
face da não aprovação no concurso de candidatos para essas áreas; além disso,
possibilitou que as instâncias institucionais, providenciassem a nomeação e
posse dos professores classificados no concurso de provas e títulos, que havia
sido homologado em 3 de maio.
Para que respondesse pela
direção do Centro, fui o primeiro professor aprovado no concurso a ser
contratado, em 29 de maio de 1995. Posteriormente, em 20 de julho, foram
contratados os demais classificados no concurso. A primeira turma de docentes
do CECITEC ficou assim constituída: Antônia Fádia Valentim de Amorim, Antônio
Charles Silvério, Célia Maria Furtado Magalhães, Deusdedit Monteiro Medeiros,
Francisco Assis do Nascimento, Geandra Cláudia Silva Santos, Isaías Batista de
Lima, João Álcimo Viana Lima, João Batista de Albuquerque Figueiredo, Marbênia
Gonçalves Almeida Bastos, Maria Ivanda Alves de Paula, Maria Ivanete de Sousa,
Mônica Petralanda de Holanda e Vânia Alexandrino Leitão.
Quanto aos primeiros
universitários, antecedendo à criação dos centros acadêmicos, foram criadas, de
imediato, as representações discentes de cada curso. Ao ser concebido como um
segmento estratégico, diretamente interessado e como força endógena para se
associar em diversas ações na fase de instalação e etapas posteriores do
CECITEC, o corpo discente foi receptivo ao chamamento da direção e teve
participação destacada e colaborativa. A propósito, em 1995 foram realizadas 13
reuniões entre a direção do Campus e os
representantes do incipiente movimento estudantil.
Sobre as condições físicas e
estruturais do CECITEC, em seu primeiro semestre de atividades, Luisa Xavier de
Oliveira relembra que: “A nossa divisão
de sala era apenas uma parede, uma parede com a parte de cima [até o telhado de amianto] descoberta;
tudo o que acontecia num lado do CECITEC – era aquela parte de dentro do
CECITEC – era o curso de Pedagogia; do outro lado era o curso de Ciências.
[...]. A iluminação também, meu Deus do céu, era precária, me lembro que muitas
colegas e, inclusive eu, ganhamos um quantitativo de grau nos óculos bem maior
no final do CECITEC. [...]. A estrutura física do CECITEC não era conveniente a
um curso, claro; banheiros precários, não tinha sala de aula, nós estudávamos
dentro de dois galpões. Para terminar mesmo a aula tinha aquela coisa: todo dia
um aniversário na sala de aula; quando um cantava parabéns o outro começava
para acompanhar. No outro dia no curso de Ciências, a gente combinava essa
brincadeira”[5].
Como pode ser observado, não
obstante o início de seu funcionamento ter se realizado em sede própria, esta
não possuía uma estrutura física adequada. No entanto, conforme atesta a
professora Maria Ivanete de Sousa, isso não foi motivo para que os docentes e
discentes do Centro não desenvolvessem um trabalho acadêmico pautado na
qualidade e no compromisso institucional. De acordo com a sua opinião: “Além da
estrutura física, que é só um dado, tem a questão de professores, a própria
condição dos alunos, de sobreviverem, de resistirem nos cursos, de não
desistirem. [...] A gente provou que estrutura física não é determinante para a
qualidade do ensino, por que o curso de Pedagogia durante três anos
consecutivos obteve nota máxima do MEC em termos de qualidade”[6].
Luciana Rodrigues Gonçalves
(ex-aluna integrante da primeira turma de Pedagogia), acrescenta que: “Foi com
bastante dificuldade que deu-se início às aulas, pois tínhamos espaço físico,
mas não contávamos com salas de aula e estudávamos no pavilhão do Centro. Em
compensação contávamos com bons professores, também selecionados pela UECE e
que tinham bastante compromisso. Com o passar do tempo as maiores dificuldades
foram sendo superadas e hoje quem entra para fazer parte do CECITEC encontra
outro panorama. Mas me sinto feliz em poder ter feito parte desse processo
desde o início”[7].
Sobre as inúmeras dificuldades
enfrentadas, ouçamos a opinião da professora Geandra Cláudia Silva Santos
(primeira coordenadora do curso de Pedagogia):
“[...] O Álcimo assumiu e começou a dirigir as atividades da forma,
assim vamos dizer, mais primitiva e mais escassa em termos de instrumentos, de
mecanismos, de condições de trabalho. Mas, aí é onde está: mesmo com isso
conseguiu, com a união de todos, dos profissionais que aqui chegaram,
professores, os outros colegas funcionários e também as pessoas da comunidade e
os alunos que já entraram com o propósito muito grande – as primeiras turmas –
não somente formar, mas de ver o CECITEC dar certo na região dos Inhamuns.
Criou um trabalho assim integrado e que pôde abrir portas e um horizonte
promissor no CECITEC”[8].
Fazendo jus à sua capacidade
de mobilização, à sua natureza acadêmica e à sua vocação para o debate, no
primeiro semestre este Centro promoveu diversos seminários e debates, com uma
média de 138,6 pessoas por evento. Esse número é superior à quantidade de universitários
à época, o que denota a participação de um expressivo público externo. A
servidora técnica e ex-secretária do Centro, Antônia Dolide Carvalho Jataí
destaca que, de fato, “tinham
vários eventos e a comunidade era muito participativa no CECITEC”[9].
Em que pese ao fato do atraso
no cronograma para o início das atividades acadêmicas, a conclusão dos cursos
em oito semestres foi possível graças ao cumprimento de uma das metas
estabelecidas no primeiro plano administrativo do CECITEC: A recuperação das
disciplinas nos meses de férias. Além disso, em tempo hábil foram realizados os
aproveitamentos de estudos, principalmente no curso de Pedagogia, em face das
alterações ocorridas entre a proposta curricular inicial e a que foi elaborada
pelos docentes e, posteriormente, aprovada pelo CEPE, em 1997.
Com efeito, em 26 de fevereiro
de 1999 foi realizada a primeira solenidade de colação de grau do CECITEC, com
a quantidade de 50 concludentes, o que representa 57,47% dos que haviam se
matriculado quatro anos atrás. Trata-se, portanto, da TURMA DOS PIONEIROS DO
ENSINO SUPERIOR NO SERTÃO DOS INHAMUNS.
Concebendo a amplitude, a
complexidade e a dinâmica que permeiam as instituições universitárias e seus
serviços, vejamos o posicionamento da professora Geandra Cláudia Silva Santos:
“Eu sempre disse isso em vários locais, aqui dentro e fora, existe a Região dos Inhamuns antes e existe
a Região dos Inhamuns depois do CECITEC. E o impacto é extremamente
positivo, assim nem consigo [...] perceber o que de ruim ou de negativo o
CECITEC possa ter trazido para cá. Porque eu entendo que a participação do
CECITEC ela ultrapassa até o nível educacional – o trabalho com a educação, com
a formação de profissionais da educação. O CECITEC tem um espectro de ação e de
penetração na sociedade de uma natureza, eu acho, que total na vida, no fazer,
no pensar do homem e da mulher da região dos Inhamuns. Então o CECITEC, ele tem
oportunizado, vamos dizer assim, espaços para trabalho, para o mercado de
trabalho, para profissionais qualificados e bem qualificados, mas ele também
tem principalmente influenciado em políticas, em decisões, em organizações, em
tomada de posições. Tem influenciado principalmente na consciência das pessoas.
Claro, é um processo, não é um dado, não é um produto, é um processo que
precisa, vamos dizer assim, ser aprimorado, ser até mais agressivo, ser repensado
constantemente, mas eu acho que o
CECITEC tem feito a diferença na cabeça, nas ações e na vida da Região dos
Inhamuns”[10].
A fala de Geandra sintetiza a
amplitude dos impactos do CECITEC, a partir do seu ano inaugural, na
qualificação das conversas (incluindo as falas dos botequins), mas, sobretudo,
na educação e nos diversos setores da sociedade que são por ele alcançados, de
forma direta ou indireta.
[1] Apud. UECE. Projeto: Centro de Educação, Ciências e
Tecnologia – Região dos Inhamuns – CECITEC; Campus Avançado – Sertão Central
II; Campus Avançado – Vale do Curu; Campus Avançado – Maciço de Baturité.
Fortaleza, 1995a. 51p.
[2] MARTINS FILHO, A. O Universal pelo Regional. 2. ed.
Fortaleza: Imprensa Universitária, 1966. 332p.
[3] EQUIPE DE COORDENAÇÃO. Diagnóstico da Região dos Inhamuns.
Tauá, 1993. 7p. (Texto digitado).
[4] Em entrevista concedida em 16 de
dezembro de 2002 ao então aluno do CECITEC, Antônio Abílio de Araújo, no âmbito
do projeto de Iniciação Científica que abordou o processo de criação do Campus de Tauá.
[5] Em entrevista concedida em 16 de
dezembro de 2002
[6] Em entrevista concedida em 3 de outubro
de 2002.
[7] Em entrevista concedida em 2 de abril de
2004.
[8] Em entrevista concedida em 11 de março
de 2004.
[9] Em entrevista concedida em 1 de março
de 2004.
[10] Em entrevista concedida em 11 de março
de 2004.
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